Nesta quinta-feira (21), durante o segundo episódio do ULT, Jessie, Kenai, Kishine e Dipper conversaram sobre questões de diversidade e representatividade no reality show de League of Legends. Após afirmarem se sentirem excluídos em alguns momentos, eles compartilharam suas histórias e pensamentos sobre temas como negritude, transexualidade, preconceitos e pertencimento à comunidade LGBTQIAP+.
Aos 40 minutos do segundo episódio, Kenai comentou com Kishine e Dipper que sentiu que eles foram excluídos em momentos pré-formação de grupos para provas e até mesmo de convivência. Quando Jessie, que é uma mulher transexual, se juntou ao grupo, o topo comparou o que estava acontecendo com o cenário nacional de esports como um todo.
Transfobia nos esports
"O cenário é extremamente machista com as mulheres, então você nem imagina como é para uma mulher trans dentro de um reality show. Sendo uma mulher você já mata um leão por dia, sendo uma mulher trans é um leão por hora. Isso é frustrante, porque sofrer machismo é ruim, homofobia é ruim, mas sendo trans, você sofre principalmente pela solidão. Não lhe permitem ter amigos, namorado, nada. Crescer sem saber o que é ser amada é muito difícil", respondeu a jogadora.
Jessie afirmou também que poucos são os que pensam nas questões que atravessam a vivência de pessoas trans, como disforias de gênero ou corporais, nas quais alguém não se identifica com a própria imagem ou com o que lhe foi designado ao nascer - embora seja importante enfatizar que nem todes transexuais sentem disforia.
"A disforia, por exemplo, é muito comum no mundo trans. Quando eu participei do mundial em Dubai [GirlGamer Esports], virei para o meu time antes de viajar e falei: 'não vou, porque não quero viajar e ser lida como um homem de cabelo grande'. Vir para um reality show, no qual vou aparecer de todos os ângulos, fez minha disforia bater lá em cima, porque é algo estruturado pelo sistema cisgênero".
Assim como Jessie, outras pessoas trans estão lutando para chegar e permanecer no cenário brasileiro de esports, como as streamers Briny, Sher Machado, Zahri, Lys Chan, Analumi e as jogadoras Ariel "Ari" Lino, da Netshoes Miners Academy, Olga "Olga" Rodrigues, da FURIA.
Ainda assim, elas constituem uma minoria não só nos esportes eletrônicos, mas também no país. São minoria por terem seus direitos negados, que vão desde respeito até a falta de políticas públicas que lhe assegurem ou auxiliem em questões como emprego, moradia e saúde.
De acordo com Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra pessoas Trans em 2020, realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 175 indivíduos, entre transexuais e travestis, foram assassinados.
"72% dos assassinatos foram direcionados contra travestis e mulheres transexuais profissionais do sexo, que são as mais expostas à violência direta e vivenciam o estigma que os processos de marginalização impõem a essas profissionais. É exatamente dentro desse cenário em que se encontram a maioria esmagadora das vítimas, tendo sido empurradas para a prostituição compulsoriamente pela falta de oportunidades encontrando-se em alta vulnerabilidade social e expostas aos maiores índices de violência, a toda a sorte de agressões físicas e psicológicas", diz o relatório.
Dessa forma, ver pessoas trans e travestis chegando longe no cenário é motivo de comemoração, mas também de reflexão para aliados, que devem pensar em formas de fazer com que não seja tão difícil o caminho de quem se identifica com a letra T da sigla LGBTQIAP+.
Racismo e negritude
O topo Kenai, que se identifica como um homem negro, também falou sobre as questões que o atravessam. "Como uma pessoa negra, passo por muita gente que, até mesmo na inocência, me perguntam o que é certo ou errado, me usam como enciclopédia".
"É o que a Camilla de Lucas falou no Big Brother Brasil, estamos cansados das brincadeirinhas, mas também de explicar tudo, porque estamos no século 21, a internet está aí como base de informação, e ainda assim fazem perguntas invasivas, quando poderiam ir pesquisar tudo na internet", respondeu Jessie.
Para Kenai, enquanto cada pessoa que faz parte de uma minoria é "só mais uma" na vida de alguém preconceituoso, esse alguém será um dos vários que a ela terá que enfrentar ao longo da vida. "Quando você é negro e a polícia te aborda, pra ela você é só mais um que ela abordará, mas para você, o policial é um dos vários que vão lhe abordar".
Durante a conversa, o topo citou outras personalidades pretas do cenário, como os jogadores Marcos "CarioK" Santos, da paiN Gaming, e Francisco Natan "fNb" Braz, da Vorax Liberty.
Atualmente, o cenário conta com outros jogadores e personalidades negros, como Ken Harusame e Lahgolas, casters do CBLOL Academy; Maah Lopez e Peu, comentarista e jogador da Liga Brasileira de Free Fire, respectivamente; o jornalista Luiz Queiroga, a streamer JinkiWinkki, entre outros.
Ainda assim, de maneira geral pretos também são minoria nos espaços que ocupam, por terem oportunidades negadas de forma direta ou indireta - o que também é errado, já que o percentual de pessoas que se declaram negras no Brasil é de 56,10%, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE.
"Na época do movimento Black Lives Matter, em que a Wakanda Streamers cresceu bastante porque muita gente começou a olhar os streamers menores, isso foi muito importante para o cenário e para quem estava e está até agora no projeto. Ter visibilidade pras minorias é importante e nesse cenário de esports é muito difícil isso acontecer frequentemente. Eu tenho certeza que vai ter muito hate esse programa. Cada vez mais diminui o hate? Talvez, mas ainda é muito e estamos aqui pra tentar mudar isso", cravou Kenai.
As consequências da homofobia
Dipper e Kishine, de 18 e 19 anos, relataram casos nos quais sofreram homofobia - intolerância cuja criminalização foi permitida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) somente em junho de 2019.
"Na escola onde eu estudava, só havia uma pessoa LGBT assumida. Eu estava no armário na época e gostava do meu melhor amigo há três anos. Em alguns dias eu saía da aula, ia para casa e chorava. Queria contar pro melhor amigo que gostava dele, mas se alguém descobrisse, me zoaria. Eu, e outras pessoas, ouvíamos muita 'piada' de gente nos chamando de 'viadinho' e isso era chato", contou Dipper.
O atirador revelou que pouco tempo depois, revelou sua paixão pelo melhor amigo, mas que após ele não reagir bem com a notícia, Dipper preferiu mudar de escola e viu sua vida melhorar. "Na minha escola nova tinha muito mais membros da comunidade LGBT, então eu me sentia em casa, né? Eu podia falar: 'Estou gostando de tal menino' e ninguém me chamava mais de viadinho!".
Já Kishine contou que sofreu preconceito quando era criança, simplesmente por gostar de dançar. "Minha família sempre foi de igreja e eu sempre fui apaixonado pela dança. Comecei a dançar no ministério de dança da igreja e lá me olhavam muito mal. Os pastores e outras fiéis falavam: 'Por que esse menino está fazendo isso? Ele dá mal exemplo para nossas crianças ao fazer danças de gesto porque isso é muito feminino!'".
O suporte também afirmou ter tido um relacionamento com uma menina trans na época em que cursava o ensino médio. "As pessoas te olham de outro jeito, era bizarro ver pessoas nos julgando", relatou o jogador.
Diante das histórias dos dois colegas, Jessie fez questão de ressaltar que não necessariamente "um homem que dança não é gay ou afeminado. Uma menina que gosta de brincar de skate ou bicicleta não é 'machinho'".
"As pessoas têm que quebrar as caixinhas de gênero. Eu gostar de rosa ou azul não define meu gênero. Um homem que se relaciona com uma mulher trans vai vivenciar 10% do que ela passa a vida toda, porque a masculinidade e sexualidade dele serão questionadas e duvidadas sempre, só porque ele está se relacionando com ela".
Vale lembrar que o cenário conta com grandes nomes que fazem parte da comunidade LGBTQIAP+, como Gabriel "Kami" Bohm, que é especialista do ULT, Gustavo "Minerva" Queiroz, Natália "nat1" Meneses, Isabelle “isa1” Glym, Camila "napeR" Naper, entre outros.
"Cada vez mais caminha pra uma melhora, mas esse caminho é muito devagar para quem sofre todo dia"
Para Jessie, uma das soluções para se tornar um aliado das causas LGBTQIAP+ e pretas é se permitir conhecer a vivência do outro.
"Isso já apoia e incentiva muito. A Jime é um exemplo, tenho uma amizade com ela há três anos. Sou a primeira pessoa trans que ela conheceu e é legal quando você descobre alguém que está disposto a conhecer seu mundo - não como um ratinho de laboratório, querendo seu diagnóstico, mas se mostrando disposta a conhecer seu trajeto, sua vida, sua rotina".
Kenai acredita também que é preciso se colocar no lugar dos outros, ouvindo verdadeiramente o que cada um tem a dizer.
"Cada vez mais [o cenário] caminha para uma melhora, mas esse caminho é muito devagar para quem sofre todo dia. É difícil explicar porquê uma fala é errada, porquê zoar alguém por ser negro na escola é errado, porquê uma piada não é humor negro e, sim, racismo velado, porquê uma piada transfóbica é algo que mata todo dia".
Vale lembrar que representatividade, em todos os sentidos, é muito importante, como explica o texto "Rayssa Leal e a representatividade nos esportes, sejam estes online ou não", da jornalista Lorena de Araújo, que também é repórter do MGG Brasil.
Nos links abaixo, encontram-se mais informações sobre os assuntos tratados no texto: