Criado em 2019, há três anos o projeto AfroGames impulsiona a vida de diversos jovens em favelas do Rio de Janeiro - especialmente daqueles que se identificam como pretos. Além de criar times de esports em diferentes modalidades, como Free Fire, League of Legends e Fortnite, nos quais cada atleta recebe um salário mínimo, a iniciativa permite que crianças e adolescentes tenham contato com computadores, internet, videogames, aulas de inglês e mais, pela primeira vez em suas vidas.
Em março, o MGG Brasil conversou com Maria Luiza "MariaAtropela" do Nascimento, que tem 22 anos e é pro player de Free Fire, e Gabriela Evellyn "haru" da Rocha, de 20 anos, jogadora de LoL, que fazem parte dos times oficiais do AfroGames e tiveram suas vidas mudadas para melhor desde o primeiro contato com o projeto.
"Quero ser capaz de ir para o CBLOL", sonha Gabriela
Suporte do time oficial de LoL do AfroGames, Gabriela, também conhecida como Haru, tem 20 anos e ressalta, a todo momento, como o projeto lhe trouxe uma nova perspectiva de vida, além de mais confiança e segurança para seguir seus sonhos e objetivos.
Ex-atleta de atletismo, Gabriela conheceu o MOBA da Riot Games por meio de seu namorado, Thiago "VanHelsing" Pestana, que também faz parte da equipe. "No começo eu não gostei muito, porque eram 40 minutos em uma partida só, isso é muito tempo. Mas aí pensei 'vou conhecer melhor para ver como é'. Não tinham falado que existiria um time profissional, mas em tudo o que faço gosto de me destacar, então dei o meu melhor", contou a jogadora, que após diversas avaliações internas, se tornou a suporte oficial do time.
Conforme se apaixonou pelo cenário competitivo do jogo, acompanhando principalmente o Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLOL), ela conta que ficou surpresa ao descobrir que poucas mulheres tinham grande destaque no meio. "Quero que tenha muito mais. Quanto mais garotas tivermos, mais isso será um exemplo de que esse lugar também é nosso", ressalta a jogadora, que enfrentou machismo por parte de outros jovens.
"Cheguei a escutar pessoas dizendo que eu só tinha entrado no time por ser uma garota. Comecei a me convencer de que era isso mesmo, de que eu era só um rostinho bonito, até que pensei 'Não! Não é por isso que estou aqui'. Fui atrás de aprender muitas coisas, como a teoria do jogo. Passei por diversos elos até chegar no Platina, agora quero ser Diamante e subir ainda mais. Quero que vejam meu potencial, meu esforço, que não importa se você é menino, menina, da favela ou não, você é capaz!".
A jogadora também afirmou que todos os dias vê como o projeto oferece melhorias na vida de seus integrantes. "É tudo aqui dentro da favela. No começo, tinha muita criança que nunca nem tinha mexido em um computador e até gente da minha idade. Eu já tinha tido acesso a um, mas não a um tão bom. Antigamente eu também não tinha condição de ter um celular, só fui ter um quando comecei a precisar fazer trabalhos da escola".
Tão importante quando o acesso à tecnologia é a mudança de perspectiva pessoal que os integrantes do projeto passam a ter. No AfroGames, os jovens produzem conteúdo para redes sociais, dão entrevistas, atividades que permitem que eles se desenvolvam e até passem a sonhar com novos objetivos profissionais.
"Aqui eu aprendi a me expressar, porque era muito mais tímida e isso mudou muito. Esse projeto mudou muito a minha vida e muda a de muita gente. Até quem não está mais aqui saiu como outra pessoa. Antes do AfroGames você pensava assim 'Ah, streams, youtubers, jogos, que legal, vou assistir', mas ninguém pensava em fazer parte disso. Agora fazemos streams, sonhamos em ser pro players. Vivendo tudo isso aqui, comecei a pensar 'posso ser isso, aquilo, quero chegar em tal lugar', com as oportunidades daqui criamos outras visões de mundo. Já levaram a gente para vários eventos, como CBLOL, Game XP, torneios de Just Dance".
Os incentivos aprendidos e oferecidos no projeto não se restringem aos centros de treinamento do AfroGames. Empolgada, Gabriela conta que atualmente mora com a família de seu namorado e que a irmã dele, de apenas nove anos, fala: "Quero ser igual você", e até já aprendeu um pouquinho a como jogar LoL e Fortnite.
Além disso, embora sempre tenha recebido muito apoio de sua mãe, ela conta que alguns de seus tios não confiavam na iniciativa e na ideia de jogar videogame profissionalmente. "Quando comecei a receber por isso, eles mudaram de opinião. Um já disse que vai começar a deixar a filha a jogar Free Fire. Muitas das minhas primas já jogam, cada uma joga um jogo diferente. Quero muito que todo mundo veja que isso é possível", explica a jogadora.
Fã da streamer Cute, da FURIA, que foi a primeira mulher a jogar um torneio profissional de LoL reconhecido oficialmente pela Riot, a Superliga 2017, Gabriela conta que também sonha em fazer faculdade de engenharia civil, mas que hoje quer continuar se dedicando ao LoL e aos seus estudos de inglês. "Meu maior sonho é ter visibilidade nesse mundo dos esports. Quero ser capaz de um dia, ir para o CBLOL, para um torneio oficial, e não ser só mais uma inscrita. Quero ser uma jogadora oficial em um time e quero ganhar. Ainda tá longe, mas vou chegar lá!".
"Essa é a primeira vez em que estou fazendo algo que realmente gosto, é um sonho", revela Maria
Pro player do time de Free Fire do AfroGames, Maria, assim como Gabriela, teve acesso a um smartphone pela primeira vez há pouco tempo. "Eu não tinha celulares assim por conta da minha situação financeira, mas em 2017 ou 2018 minha tia me deu um de aniversário. Eu sempre via o pessoal jogando esse tal de Free Fire e pensava 'não vou baixar, não vou baixar'", mas ela acabou cedendo, contou rindo.
"Eu era péssima, mas esse foi o único jogo que joguei naquele celular, comecei assim. Em 2019, conheci o cenário competitivo e comecei a acompanhar algumas coisas. Logo depois quis participar e aí fui só jogando, jogando e jogando".
Assim como Gabriela, Maria passou por avaliações do projeto até ser escolhida como uma integrante oficial do time - processo que a deixou bastante ansiosa e animada.
"Lembro que no dia [em que foi escolhida], dormi e sonhei que estava com alguns jogadores do cenário em uma bancada, em um estádio de futebol, e conseguia ver várias luzinhas de celular. Quando acordei, pensei 'isso tem que ser um sinal de que vou passar'. Eu estava agitada, com uma energia muito boa. De tarde, o Renan me disse que eu tinha passado. Mas minha ficha não tinha caído até ele ir na minha casa entregar a camiseta do time. Essa é a primeira vez em que estou fazendo algo que realmente gosto, algo para mim. É um sonho!", contou a jogadora, com um grande sorriso no rosto.
Foi justamente a entrada de Maria no time que a permitiu ajudar sua família ao mesmo tempo em que faz o que ama. "Eu venho de uma realidade muito pobre, a gente sempre está passando algum perrengue ou outro. Eu trabalhava desde 2018, quando consegui um estágio na Procuradoria do Estado, desde então ajudava meus pais financeiramente". Com o salário mínimo que recebe por jogar pelo time do AfroGames, sua renda aumentou.
Ela revelou que seus pais a apoiaram desde que souberam de sua nova profissão: pro player. "Foi até uma surpresa para mim, porque não esperava que eles me apoiariam tanto. Minha mãe teve que viajar assim que entrei para o time, mas todo dia ela manda mensagem perguntando se estou treinando, eu mando fotos para ela, que apesar de estar longe agora, é muito participativa".
A jogadora quer que sua mãe a visite no projeto assim que possível, para ver como é sua rotina de jogadora. "A gente recebe todo o apoio do AfroGames, não só na parte de esports, mas também com acompanhamento psicológico e educação física, além das aulas de inglês. Dividimos nossos horários de treino entre essas atividades, mas nossa rotina sempre começa aqui e termina em casa, porque com celularzinho na mão, levamos o treino para todo lugar", explica Maria, ressaltando a inclusão que o Free Fire cria por ser um jogo competitivo mobile.
Torcedora da LOUD desde o início do projeto, mas que também amava de paixão o Flamengo quando o clube mantinha um time de Free Fire, Maria conta que também acompanha finais de CBLOL e o cenário competitivo de Valorant - ela admira times femininos como B4 Angels e Team Liquid, antiga Gamelanders Purple.
"O cenário de Free Fire costumava ser muito fechado, e ainda é um pouco assim, para as mulheres. Até hoje não vemos tantas meninas assim, tivemos a Debs, por exemplo, mas temos muito mais influencers. Agora, com o time do Fluxo investindo em uma equipe feminina, isso vai dar mais visibilidade para nós, algo que precisamos, assim como oportunidades, porque tem muita menina dando bala por aí, mas falta oportunidade. [Eu] Fazer parte do AfroGames também é algo que vai ajudar a abrir muitas portas".
Atualmente a streamer da FURIA Daaygamer é a maior inspiração de Maria no cenário competitivo. "Conheci ela no ano passado. A Daay fez parte do único time feminino do cenário emulador na Liga NFA. Elas receberam muito hate, o pessoal era mente fechada e só faziam comentários maldosos, então acho que elas foram muito fortes. Ela tem uma história de vida incrível, não tinha como eu me inspirar em outra pessoa".