Empresário oriundo do meio musical, com trabalhos ao lado bandas como O Rappa e Jota Quest, Ricardo Chatilly sofreu um choque de realidade quando foi convidado a assistir ao The International 2017 de Dota 2 - mundial do MOBA da Valve disputado na cidade de Seattle (EUA), que na ocasião distribuiu quase US$ 25 milhões em premiação - e constatou não ter visto, entre competidores e espectadores, nenhuma pessoa negra. Durante a viagem, Chantilly recebeu uma ligação do amigo José Júnior, fundador do AfroReggae, para tocar um projeto de música em Vigário Geral. O empresário, porém, já estava com outros planos em mente após perceber o enorme apelo que o mundo dos games e dos esports tinha entre os jovens, e no começo de 2019 fundou o AfroGames.
O projeto hoje atende mais de 100 crianças e adolescentes, com cursos de League of Legends, Fortnite, programação de computadores e inglês, e conta também com um time de LoL no qual todos os jogadores recebem um salário. Chantilly sabe dos desafios que cercam o AfroGames, especialmente após a pausa em 2020 em função da pandemia de Covid-19 e o fim da parceria com a então patrocinadora, mas enxerga a retomada das atividades em janeiro deste ano como um renascimento, inclusive com a chegada de novos parceiros para a viabilização financeira da iniciativa, como a Fusion Energy Drink, a Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude do Rio de Janeiro, a HyperX e a GOL Linhas Áreas, com as duas últimas patrocinando o centro de streaming do projeto.
“O projeto surgiu há aproximadamente três anos, quando comecei a estudar esse universo dos games e dos esports, e quando o Júnior me ligou falando para tocarmos um projeto de música lá em Vigário Geral, e aí eu tive um estalo: ‘Música nada, vamos para os games’. Então eu fiz uma apresentação para ele do que eu estava estudando naquela época, e o Júnior menciona: ‘Caramba, Chantilly, eu não vi um negro jogando e não vi um negro na plateia. Eu não tinha essa visão, e respondi: ‘Cara, é verdade’”, detalha o empresário.
“Aí passou um filme na minha cabeça, de todos os lugares desse meio que eu já tinha ido, e percebi que eu realmente não tinha visto nenhum negro. A gente decidiu então montar o AfroGames. A nossa ideia era levar para a galera da favela um equipamento de ponta, um espaço de ponta, com internet boa e professores de inglês, tudo aquilo que um garoto ou garota da favela normalmente não tem acesso. É claro que sempre vão existir as exceções que superam esses obstáculos, mas a nossa ideia é transformar a exceção na regra."
Pioneirismo e dificuldades
Ricardo destaca as dificuldades para a criação de um projeto como o AfroGames, seja por questões de infraestrutura, como a instalação de internet de alta velocidade na favela, ou pela captação de patrocínios que viabilizem financeiramente o plano.
“Foi muito difícil montar o projeto. Fomos rodando em busca de vários patrocinadores, e muitas pessoas na época nem entendiam direito do que estávamos falando, o que é muito doido, pois isso foi em 2018. Quando pensamos em um projeto desse porte, só existe o AfroGames, no Brasil e no mundo. Uma escolinha como um celeiro de craques nos esports dentro de uma favela é uma coisa que hoje só existe aqui.”
Ao falar sobre o primeiro ano do projeto, Chantilly destacou que 2019 trouxe enormes alegrias e tristezas igualmente intensas. Após uma estreia com forte adesão e turmas lotadas, que se formaram no fim daquele ano, veio a notícia de que a Oi não seguiria como patrocinadora do AfroGames. Caso não houvesse uma ou mais novas empresas parceiras, a primeira turma formada seria também a única.
“Aprendemos fazendo, porque não tínhamos um manual de como dar um curso de LoL ou de programação de computadores para jovens que muitas vezes não tinham nenhum contato com esse universo. O sucesso foi enorme, mas no fim daquele ano eu recebi a péssima notícia de que a Oi seria vendida e não iria renovar o patrocínio. No dia da formatura da nossa primeira turma eu estava super feliz pela garotada, mas também super triste por saber que o projeto iria acabar ali."
Reconstrução e planos para o futuro
Se 2019 foi um ano de alegrias e tristezas, 2020 foi um ano usado para a reestruturação do AfroGames. Com a pandemia de Covid-19 e sem patrocínio, as atividades foram interrompidas, mas nem por isso deixou de ser um período de trabalho para que as atividades fossem retomadas em 2021.
“Lá para agosto e setembro, já havíamos resolvido tudo em relação a patrocínios e Lei de Incentivo do governo estadual, e eu já queria retomar o projeto em outubro, mas o Júnior achou melhor voltarmos em janeiro: “Notícia boa a gente dá no começo do ano”. Só que em janeiro os casos de Covid voltaram a subir, e ficamos desesperados. Preparamos todos os protocolos nesse período e tudo foi feito com tanto cuidado que não tivemos nenhum caso de aluno ou integrante do projeto que tenha se contaminado desde que voltamos em janeiro.”
Para Chantilly, no entanto, a ideia não é parar por aí. O empresário tem planos de levar o projeto num futuro próximo ao Morro do Cantagalo, na Zona Sul do Rio. Em longo prazo, o plano é instalar o AfroGames no Complexo da Maré, o maior conjunto de favelas da América Latina.
“Eu brinco que o AfroGames era um bebê que estava engatinhando em 2019 e agora ele já consegue andar segurando nos móveis. No segundo semestre do ano que vem já seremos um adolescente bem forte dando trabalho."
Representatividade, inclusão, diversidade
Ciente de que vive em uma sociedade estruturalmente racista, na qual a renda média de brancos é 74% maior que a de pretos e pardos no Brasil, Chantilly ressalta a necessidade de maior diversidade, inclusão no mundo dos games e dos esports. Se o pequeno número de pro players e influenciadores negros é uma realidade, parte da missão do Afrogames é ajudar a transformar essa realidade.
“Sabemos que ninguém muda nada no mundo sozinho, mas queremos dar ao máximo a nossa parcela de contribuição. O ideal é que tivéssemos um projeto desse em cada canto do Brasil, mas tentamos fazer a nossa parte. Fazer isso [a presença de negros nos esports] ser normal, porque é normal. Se os negros são mais da metade da nossa população, isso tem que ser refletido nos games também”, enfatiza.
O empresário também ressalta que mesmo que a maioria dos alunos do projeto não sigam carreira nos esports ou como criadores de conteúdo, o objetivo do AfroGames é abrir oportunidades para esses jovens no mercado da tecnologia como um todo. Por isso, os cursos de inglês e programação também são parte da iniciativa.
“No começo, muitos alunos não se interessavam tanto pelas aulas de inglês, mas quando eles perceberam que precisavam conhecer o idioma para entender melhor os jogos, todos eles mergulharam de cabeça. Nós já tivemos um aluno que conseguiu programar um jogo tipo Mario, e isso com pouco tempo de curso. Aí você imagina aonde esse garoto pode chegar se continuar recebendo oportunidades. A formação cidadã deles é parte fundamental do projeto.”