O ano de 2020 tem sido cheio de desafios em muitas esferas, inclusive para os esports. Com a necessidade de isolamento social por conta do novo coronavírus, publishers e organizadoras de torneios tiveram que repensar a forma como realizar seus eventos, alguns dos quais precisaram ser adiados e/ou cancelados devido a impossibilidades de natureza técnica, de segurança e de saúde.
Para entender quais foram os impactos da pandemia do COVID-19 em lucro, gastos e alcance dos esports eletrônicos, o MGG Brasil levantou projeções e dados sobre o desempenho do setor e conversou com Carlos Antunes, diretor de esports da Riot Games Brasil, com Roberto Dumas, economista, comentarista na BandNews TV e professor do Insper, e com pro players que disputaram o Mundial de League of Legends 2020.
Isolamento, consumo e engajamento
Em relação a outros mercados, os games não apenas sobreviveram bem, como foram impulsionados pela pandemia. Em maio, a empresa de consultoria especializada Newzoo publicou o Relatório Global do Mercado de Games em 2020, que aponta crescimento de receita e engajamento em todos os segmentos relacionados a videogames em decorrência do isolamento social causado pela COVID-19.
A pesquisa aponta que consoles e PC continuam tendo um crescimento saudável, com os consoles podendo alcançar a receita de US$ 45,2 bilhões e crescimento de 6,8% por ano, e os jogos de computadores com US$ 36,9 bilhões e crescimento de 4,8%.
Porém, os games mobile ainda lideram com o maior crescimento do setor. Este ano, os jogos de celular podem alcançar o crescimento anual de 13,3% e gerar U$ 77,2 bilhões. O valor representa quase metade da receita total do segmento de games, que deve crescer em 9,3% e chegar a US$ 159,3 bilhões.
Uma amostra deste crescimento foi a alta de 26% da receita total da Tencent no último mês de março, como revelou a Reuters. A gigante chinesa é líder em games mobile, detendo os direitos de jogos como PUBG Mobile e Free Fire.
A Newzoo ainda aponta que a América Latina terá o maior crescimento do mercado de games, com previsão de alta de 10,3% - no entanto, a região ainda representa só 4% da receita global. Os hábitos de consumo dos latino-americanos no setor estão centrados nos aparelhos celulares, resultado do maior acesso ao mobile em relação ao alto preço de consoles e PCs.
Impulsionados pela alta dos games, os esports também se viram acumulando mais números durante a pandemia. O Relatório Global do Mercado de Esports em 2020 da consultora especializada projeta que a receita do segmento ultrapassará US$ 1,1 bilhões este ano, com crescimento de 15,7% em relação a 2019. O engajamento dos esportes eletrônicos também deve aumentar em 11,7% em 2020, com a audiência dos torneios podendo ultrapassar o marco de 495 milhões de pessoas.
Segundo a pesquisa, o crescimento se deve principalmente à alta do setor mobile, principalmente no Sudeste Asiático, na Índia e no Brasil.
Esports na pandemia
Desde março, reflexos desse crescimento se tornaram cada vez mais evidentes para a comunidade de esports brasileira.
Em junho, o Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLoL) bateu o recorde de mais 336 mil espectadores simultâneos e média de quase 178 mil viewers na semana de abertura do 2º split. Mais cedo, entre fevereiro e março, a 1ª etapa da Liga Brasileira de Free Fire (LBFF) registrou média superior a 381 mil espectadores simultâneos por partida.
As publishers dos dois jogos, Riot Games e Garena, também não pouparam recursos para expandir suas marcas no país. A desenvolvedora do MOBA investiu em lançamentos de jogos, como Legends of Runeterra e Valorant, e de novas competições no cenário brasileiro. Do outro lado, a produtora do battle royale fechou mais de uma parceria com a Netflix, com a realização de um painel temático do evento de La Casa de Papel em um prédio de 15 andares na cidade de São Paulo (SP).
Para Roberto Dumas, o movimento de expansão é resultado direto dos novos hábitos do consumidor durante o isolamento social. “A pandemia mudou alguns hábitos da população: ir ao shopping, cinema e restaurantes foi largamente substituído por atividades dentro de casa. Até mesmo para aqueles que não entendiam nada de videogames acabaram por buscar refúgio em atividades prazerosas dentro de casa, dado o cerceamento da liberdade. Fora isso, o Brasil é um grande mercado consumidor: 68% do nosso PIB é consumo. A gente adora gastar e, diante de tudo isso, as produtoras do setor de jogos estão tratando o seu público bem".
Carlos Antunes acredita que, em 2020, os esports retornaram às suas raízes e, por isso, se saíram melhor do que outros setores durante a pandemia. “Nos esports, a inovação rodou mais rápido. Mesmo que os torneios tenham estruturas de transmissão físicas, os profissionais que operam isso conseguiram rapidamente ter uma versatilidade grande no meio online. Vários tipos de conteúdo foram suporte para as pessoas, e os esports - junto com os games - com certeza ajudaram a todos a se conectarem e passarem por esse período. Para nós [publishers], foi uma prova de fogo grande, mas no final, o público, jogadores e parceiros entenderam que nossa indústria já está muito sólida, e por isso acredito que saímos mais forte disso".
Cancelamentos, adiamentos e a transição para a operação remota
Mesmo que a pandemia tenha impulsionado os games e esports em 2020, ambos os setores também sofreram perdas com a transição para a produção remota. Devido ao distanciamento, diversos jogos tiveram atrasos de desenvolvimento, o que causou o adiamento de títulos como Cyberpunk 2077, The Last of Us 2 e Halo Infinite.
Nos esportes eletrônicos, a maioria dos campeonatos mundiais se tornaram inviáveis devido à necessidade de operação local e da presença dos times. Por isso, competições como o The International, a EVO e o Major de CS:GO - highlights do calendário anual de esports - tiveram seus eventos presenciais cancelados. Devido às limitações de segurança, saúde e tecnologia, fãs e jogadores ficaram limitados a torneios realizados em servidores regionais.
Para manter a qualidade e o alcance das transmissões, diversos campeonatos tiveram que readequar sua operação para que fosse realizada remotamente. Antunes explica quais foram as adaptações necessárias para manter o CBLoL no ar em 2020 - um ano que, além da pandemia, também teve outro incidente que comprometeu o torneio: as enchentes causadas pelas fortes chuvas em São Paulo (SP) em fevereiro.
“A principal coisa que a gente precisou trabalhar foi deixar de depender de estrutura física. (...) Isso considerando que a nossa não é em nada diferente de uma estrutura de TV: palco, equipamentos fixos, rede cabeada, de internet, de elétrica toda fechada. (...) Todas essas pequenas coisas que garantem nossa segurança de produção precisaram ser jogadas na nuvem, com uma solução robusta para aguentar 60 pessoas. Fizemos muita pesquisa de soluções usadas em TV e em outras regiões da Riot. Cada pedacinho da produção requereu um planejamento de como colocar na nuvem e como garantir performance de conexão”.
Transferir toda a produção do campeonato para o meio online, no entanto, também implicou em novas complicações e impasses técnicos encontrados ao longo dos dois splits: “Um dos problemas que tivemos que lidar foi a questão dos computadores dos jogadores. Eles também estavam fazendo quarentena - alguns em gaming houses e outros em suas casas, e isso até em outros estados ou cidades -, então precisamos fazer um planejamento longo com os times para verificar quais eram os equipamentos que o jogador tinha. (...) Todo esse teste, com todos os oitos times e todos os jogadores, durou aproximadamente três semanas. Fora isso, cada vez que encontrávamos um problema, nosso time procurava os times e fazia o possível para garantir que o jogador conseguisse estar com máquina e conexão prontos”.
É de se perguntar, inclusive, se as mudanças de operação causaram um gasto maior ou menor para os campeonatos. Segundo Carlos Antunes, isso não foi uma questão para o CBLoL, visto que o custo do torneio se manteve com as realocações da operação. “Sendo muito sincero, para nós não foi uma questão, a gente não buscou a redução de gastos. (...) Há a possibilidade de fazer torneios cada vez melhores a baixo custo porque as ferramentas estão se popularizando, então os torneios menores estão se tornando cada vez melhores esse ano. Isso é um ponto interessante. Mas, em relação aos torneios profissionais, não necessariamente o torneio fica mais barato, porque precisamos garantir a qualidade do conteúdo".
Os esports sobreviveram bem ou mal a 2020?
Mesmo que o isolamento social tenha feito com que os torneios enfrentassem novos obstáculos quanto a preparo e readequação, os esports conseguiram, ainda assim, realizar grandes espetáculos em 2020.
Em setembro, a final do 2º split do CBLoL aconteceu no topo de um arranha-céu em São Paulo (SP). O diretor de esports conta que a Riot Games Brasil contratou uma equipe de profissionais da saúde para direcionar o planejamento do evento e realizar testes constantes na equipe presente - que, se em uma final tradicional do torneio seria composta por cerca de 100 pessoas, na decisão deste ano foi formada por apenas 25 pessoas presentes.
A publisher também segue rígidas condutas de segurança e saúde para a realização do Mundial 2020, que acontece em Xangai, na China, desde 25 de setembro. O torneio reúne equipes de cinco regiões diferentes e, para acontecer, todos os jogadores foram mantidos em isolamento durante duas semanas antes do início das disputas, além de constantemente passarem por exames de saúde.
Quando perguntados pelo MGG Brasil sobre como foi competir no Worlds sob as rígidas medidas de saúde, os brasileiros Ygor “Redbert” Freitas e Rodrigo “Tay” Panisa disseram que não sentiram que o isolamento impactou o time. Porém, Onur "Bolulu" Can Demirol, meio da SuperMassive, afirmou que as novas condições adicionaram uma nova camada à disputa.
“Foi bastante diferente, um pouco exaustivo e mentalmente desafiador. Esse tem sido um período difícil para muita gente no mundo inteiro e nos afetou bastante. As duas semanas de quarentena foram… apesar das circunstâncias, a Riot nos providenciou muito conforto, mas passar duas semanas sozinho em um quarto de hotel não é algo divertido. Então, sim, isso afetou nosso trabalho, nossa mente e nossas condições”.
James "Halo" Giacoumakis, meio da Legacy Esports, também concorda que sua equipe teve seu psicológico afetado pelas medidas de segurança, explicando que “elas tem que acontecer, precisamos estar seguros, mas a quarentena definitivamente afeta um pouco a nossa mente.”
O Mundial de League of Legends, de fato, se destaca como o único evento internacional de esports que pôde ser mantido durante a pandemia. Mesmo assim, Carlos Antunes analisa que o setor se manteve muito bem mesmo com a pandemia visto que, no caso do próprio CBLoL, a adaptação ao ambiente online foi rápida e natural.
“O isolamento que tivemos que nos submeter gerou um efeito positivo para as empresas que conseguiram superar os desafios. Os esports conseguiram ser ágeis na adaptação e, com isso, tiveram a possibilidade e inovar em torno de entregar um conteúdo melhor. Isso é muito bom, porque renova o compromisso que nós temos de entregar um conteúdo que os nossos fãs gostem. O fato de que tivemos [CBLoL] bom desempenho de audiência, apesar de todos os incidentes que aconteceram no ano, também é um balanço positivo. É um balanço de que haverá momentos difíceis, mas a gente consegue. (...) Isso ajudou a colocar a gente junto sob o propósito do que é esports. Para o nosso segmento, isso teve um efeito positivo.”