Nos últimos anos, felizmente, o cenário de esports vem passando por uma reformulação, com organizações revolucionando a forma de se comunicar nas redes sociais, com o surgimento de demandas por profissionalização e pautas que anteriormente não tinham espaço: como a necessidade de acompanhamento na saúde de jogadores profissionais e criadores de conteúdo deste nicho - seja psicológica ou fisioterapêutica.
No ano de 2021, Luciana Nunes ficou conhecida como a “sexta jogadora da paiN Gaming”, pois realizou o acompanhamento psicológico da line-up do time, que levou o título do 1º split do CBLOL 2021 e disputou o MSI no meio deste ano. A discussão sobre saúde mental nunca se fez tão presente.
A própria vida nos holofotes
Aqueles que acompanham de perto a realidade dos esportes, seja League of Legends, CS:GO ou Valorant, já devem ter se deparado mais de uma vez com anúncio de algum streamer, criador de conteúdo ou jogador profissional se afastando - momentaneamente ou não - para cuidar da saúde mental. O streamer Baiano, por exemplo, já deu uma pausa em sua carreira no competitivo de LoL, durante o ano de 2018, após ser diagnosticado com depressão.
A exposição daqueles que vivem com a internet é imensa e pode trazer riscos sérios. Lucas Bajerski, que atua como psicólogo clínico e psicólogo do esporte e esports, atualmente na HighPower, relatou ao MGG Brasil que “manter a saúde mental e dosar a internet de maneira saudável é o principal desafio para os jogadores profissionais e criadores de conteúdo, porque muitas vezes o produto deles não é um objeto específico, mas sim a própria vida”.
"O risco é muito voltado para desenvolver problemas relacionados a diversos transtornos mentais, que vão dos mais leves, até os mais graves. A exigência de competitividade aumentou muito e isso exige cada vez mais dos atletas. Na internet as coisas acontecem de maneira muito rápida e nos eSports vemos esse mesmo fenômeno, do dia para noite tudo muda e uma vírgula colocada errada pode gerar um grande problema. A preocupação tem que ser colocada diretamente sobre aquele humano, já que a parte atlética é só uma face da vida daquele indivíduo", continuou o profissional.
A ex-streamer Flávia "Fravineas" Sayuri, antigamente conhecida como Sasa, foi uma das criadoras de conteúdo que - entre outros motivos - decidiu se escolher ao invés de continuar em um espaço que a afetava, parando de fazer streams e se desvinculando da comunidade dos jogos.
Gustavo Lôpo, psicólogo pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e pós-graduando em Neuropsicologia pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC), disserta que o acompanhamento psicológico é importante justamente por diversas demandas virtuais estarem diretamente ligadas à estrutura pessoal e individual do indivíduo: "Pode ser fundamental para lidar com as demandas rotineiras desse estilo de vida, buscando estratégias de enfrentamento e de autoconhecimento para chegar a um objetivo e um nível adequado de performance para atuar".
Exposição extrema nas redes sociais
Um outro ponto agravante que afeta diretamente a saúde mental das personalidades dos esports são acontecimentos expostos repentinamente para milhares de internautas comentarem e assistirem. Casos de exposeds andam tendo uma certa frequência no cenário, nos quais mulheres - mesmo que vítimas - acabam sendo brutalmente afetadas, cobradas e expostas, ficando sujeitas a um esgotamento mental preocupante. Lôpo, que atua com atletas individuais de CS:GO e Free Fire, atualmente na WorkHard Esports (que se encontra inativa no momento), vê essa exposição como algo de extrema importância que deve ser acompanhado com atenção no meio eletrônico. "Isso pode ser ótimo para várias profissões, como os atletas, influenciadores, streamers, psicólogos, jornalistas e as mais diversas carreiras, mas se não for feito com cautela e respeitando limites, respeitando os demais daquele espaço, o ambiente pode se tornar tóxico e nocivo à saúde mental das pessoas".
Para ilustrar seu ponto, ele deu como exemplo o momento em que uma equipe perde uma partida importante de um campeonato e logo em seguida os atletas vão às redes sociais: "Essa atitude pode parecer inofensiva, mas na maior parte das vezes em que isso foi observado, diversos torcedores (ou seriam haters?) aparecem nessas postagens para xingar e ofender os atletas, o que pode comprometer seu desempenho e saúde mental a curto, médio ou até longo prazo". De fato, é um comportamento visto com muita frequência no cenário competitivo, principalmente no Twitter.
Não apenas, a vida de influenciadores acabam virando novelas, com internautas dando opiniões livremente, esquecendo que figuras públicas são, afinal, seres humanos. Temos como exemplo o relacionamento entre Caju, apresentadora e criadora de conteúdo, e brTT, atirador da paiN Gaming, relação que durante anos foi amplamente debatida nas redes sociais, como se todo perfil anônimo do Twitter fizesse parte - algo extremamente invasivo e danoso.
Bajerski salienta a necessidade da separação entre o ser público e o ser humano por trás daquele personagem que está exposto: "Todo mundo gosta de saber de bastidores, conhecer a vida das pessoas públicas e se sentir íntimo... mas essa proximidade também prejudica. Temos essa falsa impressão de conhecer a pessoa e nos sentimos à vontade para falar sobre ela abertamente. Isso vira um problema quando sabemos que atualmente, na internet, comentários de ódio têm o dobro de engajamento que comentários positivos. Vivemos uma era de cancelamentos e desumanidade muito grande, vemos todo dia vários personagens sumindo, mas as pessoas ficam... e como elas saem disso?".
Como se blindar de possíveis problemáticas advindas de exposição nas redes
Bajerski destrincha que a questão não é a necessidade de mudar as redes sociais e sim como nós lidamos com elas: "A psicologia surge nessa humanização cada vez mais necessária dentro dos meios eletrônicos". Lôpo, por sua vez, acredita que as redes sociais podem ser um dos principais fatores de risco para atletas mais adeptos a seu uso, alegando que talvez a melhor maneira de se blindar de uma exposição negativa seja "fazer as coisas da maneira correta e agindo com honestidade em todas as situações, sem se envolver em polêmicas ou brigas desnecessárias (ou as “tretas” da internet)".
"Quando a rede social é utilizada de forma saudável e sem alimentar essas partes negativas citadas anteriormente, a tendência é de que não sejam geradas essas problemáticas, mas elas podem ocorrer de forma inesperada ou algumas vezes por engano, de forma caluniosa. Nesses casos deve-se buscar orientação jurídica para arcar com a calúnia (que é um crime) e buscar atendimento psicológico para lidar com as consequências emocionais que isso venha a causar, analisando caso a caso e as consequências individuais que isso causa em cada um."
A importância de acompanhamento psicológico no mundo dos esports
Dentro do cenário competitivo, Lôpo tece que "os psicólogos dentro de uma organização de esports devem buscar conhecer a rotina e o funcionamento dos indivíduos e do grupo coletivamente, proporcionando atividades, conversas, reflexões e um ambiente propício - além de mentalmente saudável - para que a equipe possa se desenvolver e estar em contato com aquilo que seja necessário para desempenhar da melhor maneira possível".
"Além disso, também pode-se estabelecer como função o auxílio para uma rotina com maior qualidade de vida, hábitos saudáveis e que sejam condizentes com a vida de atletas que buscam desempenhar cada vez melhor, cuidando de si e respeitando limites pessoais e coletivos para atingir tais objetivos."
Foi respeitando os próprios limiteis pessoais que, de acordo com o ge, um dos melhores jogadores de League of Legends do mundo se despediu do cenário competitivo internacional. Lee "Wolf" Jae-wan sofria de ataques de pânico, crises de ansiedade, depressão e transtorno de adaptação. O jogador que atuava na função de suporte, buscou acompanhamento psicológico e enfrentava os distúrbios psicológicos desde sua descoberta, mas decidiu se afastar para cuidar da sua saúde, visto que não tinha conhecimento de quais eram seus gatilhos: seu desempenho enquanto jogador, a pressão da organização ou a reação dos fãs.
Lôpo diz que não é possível apontar os exatos riscos de ser um atleta de esportes eletrônicos e não fazer qualquer tipo de acompanhamento psicológico "visto que não é algo obrigatório, além de que cada caso deve ser visto e analisado de forma individual considerando a singularidade de cada um".
Mas continua: "De forma geral, o que pode ocorrer é uma falta de preparo psicológico para lidar com turbilhões de sentimentos e momentos que esses atletas passam no dia a dia, além de toda a pressão imposta para obterem resultados imediatos e ganharem todos os campeonatos".
"Alguns atletas também podem apresentar dificuldades para lidar com conflitos pessoais ou coletivos inseridos em equipes de esports, estabelecer uma rotina que seja saudável e não comprometa suas funções cognitivas e o desempenho desejado e podem não conseguir muitas atingir níveis de concentração e ativação ideais para a prática esportiva (tradicional ou eletrônica)."
Com o encerramento do mês de Setembro, no qual acontece a campanha brasileira "Setembro Amarelo" em prevenção ao suicídio, é necessário o mantimento do diálogo sobre saúde mental. Caso precise de ajuda procure um profissional ou entre em contato com o Centro de Valorização da Vida, no qual você pode obter suporte emocional ligando 188 ou entrando em contato pelo chat ou e-mail, funcionando 24 horas por dia.