Se você acha que “brTT preso” é a única fanfic sobre Felipe “brTT” Gonçalves, atirador hexacampeão do Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLOL), está cometendo um engano. E se eu disser que existem, pelo menos, dezenas de histórias sobre diversos jogadores do torneio?
O MGG Brasil conversou com Manoela “ManzMilk”, mais conhecida no Twitter como a “menina das fanfics”, que é a grande responsável por várias das histórias fictícias sobre brTT, Igor "DudsTheBoy" Lima, Marcos Henrique "Krastyel" Ferraz, Denilson "Ceos" Oliveira, Mateus "SkyBart" Neves, João Pedro "Dionrray" Barbosa, Francisco Natan "fNb" Braz, Marcos "CarioK" Santos e outros grandes nomes do cenário competitivo brasileiro de LoL.
O que são fanfics?
Fanfic é a abreviação da expressão inglesa “fanfiction” que significa “ficção de fã” em português. São histórias criadas por fãs a partir de obras originais encontradas em filmes, livros, séries, mangás, animes, histórias em quadrinhos ou videogames, ou a partir de narrativas alternativas sobre grupos musicais e celebridades.
Apesar desse tipo de produção por fãs existir há muito tempo, o termo se tornou popular na década de 1970, quando fãs de Star Trek começaram a produzir fanzines, termo inglês que une as palavras fan e magazine, que significa revista de fã. Essas publicações não oficiais continham histórias alternativas baseadas em personagens do universo da série.
Com o surgimento da internet, no fim de 1990 e ao longo dos anos 2000 as fanfics passaram a ser publicadas em sites e blogs, o que fez com que elas se popularizassem cada vez mais. Com apenas alguns cliques, era possível publicar grandes histórias ou capítulos constantemente atualizados sobre diversas obras e celebridades: Star Wars, Harry Potter, As Crônicas de Nárnia, Game of Thrones, O Senhor dos Anéis, Naruto, Death Note, além de bandas e grupos que vão desde Beatles até One Direction e Paramore.
De acordo com Maria Lucia Bandeira, Doutora em Letras pela PUCRS e professora de Língua Inglesa e Leitura e Produção Textual na Faculdade Meridional - IMED, o ato de escrever uma fanfic é muito significativo, já que mostra que os fãs estão rejeitando a ideia de uma única e definitiva versão de seu objeto de escrita, que muitas vezes é produzido e regulado pela indústria do entretenimento.
Segundo o téorico da comunicação Henry Jenkins, que faz parte das referências bibliográficas do trabalho de conclusão de curso “Do fã consumidor ao fã navegador-autor: o fenômeno fanfiction”, escrito por Bandeira, as fanfics “reparam alguns dos prejuízos causados pela privatização da cultura, permitindo que esses potencialmente ricos arquétipos culturais falem por e para uma variedade cada vez maior de visões políticas e sociais”.
Esta consequência faz com que as fanfics sejam uma forma de direcionar o conteúdo de uma obra para “nichos culturais que não estão representados, ou estão mal servidos pelo material [original] divulgado”. Ou seja, por meio destas histórias ficcionais, mulheres, pessoas pretas, asiáticas, latinas, membros da comunidade LGBTQIAP+, podem encontrar formas de existir e de serem representadas em diversos produtos nos quais não se enxergam, criando novas histórias.
ManzMilk: A menina das fanfics
Conhecida como a “menina das fanfics” no Twitter, Manoela “ManzMilk”, 19 anos, gosta de escrever desde criança.
“Desde os sete ou oito anos de idade eu era uma pessoa que gostava de contar histórias, sempre gostei de criar mundos, é uma característica minha porque tenho ideias com facilidade. Eu comecei a escrever por conta de Naruto, pois é uma história que fez parte da minha infância e adolescência, mas comecei a postar meus textos em 2015, quando encontrei o Wattpad [famoso site para publicação independente de histórias]”.
Manu, como também é chamada nas redes sociais, conheceu o LoL em 2017, quando assistiu a uma reportagem do Esporte Espetacular sobre a final do 2º split do CBLOL daquele ano, entre paiN Gaming e Team oNe, que aconteceu no Estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido como Mineirão, em Belo Horizonte.
Mas foi só em 2019 que ela realmente começou a jogar o MOBA da Riot Games. Jogando entre amigos e também com sua irmã, duo que lhe rendeu a posição de suporte, ela acabou mudando de função mais tarde, quando ouviu de um ex-namorado que “mulheres não sabiam jogar de Draven”. Atualmente, ela é uma atiradora bastante orgulhosa.
Fã de Leonardo "Robo" Souza e Augusto "Klaus" Clauss, ela chegou a pensar em escrever fanfics sobre os dois pro players, mas parou, por vergonha, e deixou a ideia de lado. “Eu pensava ‘ninguém escreve sobre isso’ e via como um tabu criar histórias sobre pro players”, disse a escritora. Então, ela mudou de tática e pensou em uma história original.
“Criei um time feminino e coloquei o nome delas de The Snakes. Elas são Athena, Storm, Kira, Rose e Moon. Elas ganharam o Circuitão em 2019 e no ano seguinte entraram no CBLOL. Cada uma tem seus próprios problemas e romances. Cheguei a escrever 22 capítulos e foi com essa história que aumentei meu número de palavras por história. Eu sempre escrevia 2 mil palavras mais ou menos, mas com essa fic cheguei até 15mil!”.
Manu contou ao MGG Brasil que teve essa ideia porque não existem times compostos só por mulheres no CBLOL. “Também tem a ver com esse negócio das pessoas pensarem que todas as meninas são suporte, mas elas não são. Elas são boas, cada uma em sua posição e conseguem amassar os times do CBLOL. Isso surgiu do sonho de que um dia verei um time feminino como o delas”.
The Snakes ainda não é uma fanfic publicada, mas a autora deste texto - que pode, ou não, ter sido uma assídua escritora de fanfics sobre Jonas Brothers, Miley Cyrus, Selena Gomez e Colírios da Capricho nos anos 2010 - já pediu (implorou) para que Manu divulgue a história.
Realidades e universos alternativos do CBLOL
No início de 2021, Manu escreveu Une Chance, sua fanfic xodó. A história fala sobre o romance entre Rose, uma suporte que jogava pela equipe europeia Fnatic, e brTT, atirador da paiN. O suporte queria jogar com Han "Luci" Chang-hoon e não ao lado da desconhecida Rose, mas segundo Manu, quando ele vê que a jogadora é muito boa e encantadora, eles se apaixonam.
A história está publicada no site Spirit, no qual todas as fanfics de ManzMilk se encontram, e já conta com sete capítulos que totalizam mais de 35 mil palavras. Antes de publicar, ela estava insegura, mas encontrou outras duas fanfics sobre o CBLOL no site, uma sobre Filipe "Ranger" Brombilla e outra sobre Eidi "esA" Yanagimachi. A autora do texto sobre Ranger a encorajou a postar a história e assim o movimento cresceu.
Atualmente, Manu possui outras nove fanfics, entre histórias concluídas, em andamento e pausadas. Une Opportunité, por exemplo, conta “a mesma história” de Une Chance, mas ao contrário, com brTT deixando o Brasil para se tornar o suporte de Rose na Fnatic. Há também histórias de universo alternativo com o atirador, como O Guarda-Costas, na qual ele cumpre essa função para Rose (sim, esta personagem possui um multiverso).
Além disso, a escritora também já publicou algumas one-shots, nome popular para as fanfics de capítulo único, que geralmente já apresentam início, meio e fim aos leitores. Nessa categoria, Manu possui histórias como 10 Coisas que Odeio em Griff, sobre Lucas "Accez" Miranda e Marcelo "griff" Quidiguino; Um por Cento, sobre Duds e Ceos; Análise, sobre Dionrray e a personagem fictícia Elena, entre outras.
O processo de escrita da jogadora envolve desde criar universos e regras para suas histórias, até acompanhar o dia a dia de pro players no Instagram, para ver como se comportam e o que fazem fora de jogo, até desenhar o mapa do LoL para pensar exatamente nas jogadas que quer descrever em seus textos.
Repercussão entre pro players
Quem acha que as fanfics de Manu - e de outras escritoras - estão escondidas em cantos da internet também se engana. Vários pro players já leram e até mesmo reagiram às histórias em lives.
Em maio de 2021, Dionrray divulgou Análise, fanfic que Manu escreveu sobre ele. “Minha amiga Ju começou a panfletar a fanfic do Dion sem eu saber. Aí o painzete publicou um print da história, o Dion viu e retuitou comentando”, contou a escritora.
No mesmo mês, Duds leu sua one-short Um por Cento, na qual é namorado de Ceos. “Criei essa fanfic no dia em que ele postou um vídeo fingindo que beijaria o Ceos, para imitar o casal Yadinho. [...] Terminei a história no mesmo dia e uma das minhas amigas disse que ele leria tudo em live. Lembro que chorei de emoção. Eu estava nervosa porque fico insegura com minha escrita, mas ele gostou muito e elogiou tanto que até fiquei emocionada”.
Drop, Krastyel, Griff, Accez, Skybart e Cariok e outros jogadores também ganharam fanfics feitas por Manu e chegaram a conversar com a autora nas redes sociais - que sempre fica emocionada com essas interações.
No entanto, um de seus “personagens” preferidos, brTT, foi um dos únicos jogadores que ainda não conversou com ManzMilk sobre as fanfics. “Ele ainda não me notou, é o que falta na minha lista”, disse Manu, rindo. “Acho que meu coração aceleraria muito se ele visse, não sei qual seria a reação dele. É o jogador do qual tenho mais receio, porque foi com ele que comecei tudo isso. Se ele comentasse algo sobre, acho que eu ia chorar!”.
Para não dizer que o “pai” não notou Manu de nenhuma maneira, recentemente ela editou um fundo de tela com imagens do jogador e ele lhe respondeu com um coração no Twitter.
Hate da comunidade
As fanfics do CBLOL ainda estão se popularizando, mas já é possível ler ao menos 20 delas pela internet. “Sei que não fui a pioneira, mas sinto que alavanquei parte do cenário. [...] O grande problema é o tabu. Algumas pessoas e grupos específicos não aceitam esse movimento, o que impede autores em potencial de começar e querer escrever sobre o assunto”.
ManzMilk conta que entende quando os próprios jogadores comentam as fanfics e dão risada - desde que isso não seja feito de maneira desrespeitosa, mas conta que já passou por casos em que a “zoeira” foi agressiva. Segundo a autora, torcedores irritados e pessoas que se relacionam amorosamente com pro players já menosprezaram o trabalho dela e de outras mulheres que escrevem fanfics.
“Uma das minhas melhores amigas no meio das fanfics já falou com um pro player com o qual ela tem contato sobre minhas histórias e ele assegurou que estava tudo bem escrever sobre isso. Meu receio é algum pro player não gostar, ou achar errado e até pedir para apagar”, desabafa a escritora.
Ainda assim, Manu conta que outras mulheres escritoras já sofreram hate, principalmente as que escrevem sobre os jogadores formando casais LGBTQIAP+. Uma de suas amigas, Maria Julia “QueenWonderland”, que escreve uma fanfic sobre brTT e Luci, já sofreu com ataques de fãs do atirador.
Para encontrar apoio neste meio, Manu, Maria Julia e outras 10 mulheres fazem parte do grupo Fanfiqueiras da paiN, composto por escritoras e leitoras. “Quando sofri meus primeiros hates, elas me defendiam. Sempre tive apenas um melhor amigo para ler minhas histórias, mas do nada surgiram 11 meninas para me ouvir e elas me acham incrível, eu fico até sem jeito quando me elogiam. Cada uma está em um canto do Brasil, mas espero encontrar cada uma delas um dia”.
Por que fanfics são tão odiadas?
Como já foi mostrado ao longo do texto, não é incomum encontrar quem tenha preconceitos contra fanfics. Os textos são classificados como bizarros, cringe, desnecessários, vergonhosos, mas o que falta aos críticos é pensar no quanto essa forma de escrita pode formar grandes autores.
De acordo com Francesca Coppa, professora de Literatura da Muhlenberg College, nos Estados Unidos, “há uma ideia de que a escrita de meninas adolescentes é ruim”. Ela conta que já enviou diversos feedbacks a jovens mulheres dizendo: “ei, se eu escrevesse como você com sua sua idade, eu dominaria o mundo!”.
Em entrevista ao Splash UOL, Ray Tavares, autora brasileira de livros como Heroínas, Os 12 Signos de Valentina e Confissões de uma Ex-popular, disse que “rola um machismo velado porque tudo o que mulher gosta, principalmente mulheres jovens, não tem valor cultural”. Esse menosprezo se estende para outras comunidades comumente silenciadas, como a comunidade LGBTQIAP+. Vale lembrar que jovens meninos também escrevem fanfics e sofrem preconceito também, já que essa intolerância atinge o universo das fanfics como um todo.
Fanfics já se tornaram obras bastante famosas. Embora não seja um dos exemplos preferidos dos fanfiqueiros, Cinquenta Tons de Cinza começou como uma fanfic de Crepúsculo e alcançou grandes feitos em bilheterias e livrarias de todo o mundo. O livro After, que também foi adaptado para o cinema, é um fanfic sobre o grupo musical One Direction.
Trono de Vidro, da autora Sarah J. Maas é uma fanfic do clássico conto de fadas Cinderela e, além de Ray Tavares, citada anteriormente, a autora brasileira Babi Dewet também começou sua carreira escrevendo e publicando fanfics. Sua primeira obra publicada, Sábado à Noite, começou a ser escrita como uma fanfic da banda McFly.
Com planos para escrever fanfics encomendadas e histórias sobre Gustavo “Baiano” Gomes, Robo, Thiago “Tinowns” Sartori, Giuliana “Caju” Capitani, Martin "Rekkles" Larsson, entre outras personalidades, ManzMilk deixa um recado final sobre as fanfics, histórias que mudaram sua vida:
"No fundo, todo mundo cria fanfics, todo mundo quer conhecer um famoso… isso não lhe torna uma pessoa estranha, apenas humano, porque todos somos capazes de sonhar e imaginar. Às vezes só queremos transportar nossos sonhos e vontades para a escrita e isso não é vergonhoso. Fanfics são um caminho para futuros escritores. Não ria de uma pessoa que escreve uma fanfic, história original ou sobre um casal LGBTQIAP+”.