Os esportes eletrônicos trouxeram à tona uma das profissões mais cobiçadas por jovens - e até adultos - do mundo inteiro: trabalhar como um jogador profissional de videogame. Com isso, surgiram grandes times e a necessidade de organizar essa nova profissão. Se até há alguns anos as organizações não sabiam lidar com questões como o valor do salário dos pro players e quantas horas eles deveriam trabalhar por dia, agora é necessário agir de acordo com a lei e oferecer carteira de trabalho.
Para esclarecer as dúvidas de jogadores e futuros profissionais sobre as questões contratuais dos pro players, o MGG conversou com as advogadas Daniela Vendramini e Luciana Lopes sobre as obrigações das organizações na hora de levar a sério os direitos dos jogadores.
Contrato de trabalho
De acordo com a advogada Daniela Vendramini, “a definição do contrato individual de trabalho é dada pela CLT, no art. 442, e é um acordo que pode ser feito de forma verbal ou tácito, escrito ou expresso e que trata das relações de emprego, entre empregado e empregador”, ou seja, fala sobre as obrigações da empresa em relação ao funcionário e vice-versa.
No futebol, de acordo com a Lei Pelé, “para que uma competição esportiva seja considerada profissional, ela deve ser promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais”, para que isso acontece é necessário que um clube pague um salário para seus jogadores.
Como esse modelo também é usado em outras modalidades, como vôlei e basquete, ele é comumente utilizado nos eSports. E para que as negociações sejam feitas de forma segura, que beneficiem tanto os jogadores quanto as organizações, quais informações um contrato deve conter?
De acordo com a advogada Luciana Lopes, é muito importante que um contrato apresente informações como “prazo contratual [tempo que o jogador permanecerá representando o clube], forma de remuneração [salário], outros adicionais, multas, acordos de confidencialidade, férias”, entre outras como as cláusulas indenizatória e compensatória, presentes em negociações que seguem a Lei Pelé.
- Indenizatória: precisa ser paga pelo pro player para a organização. É necessária quando o jogador vai para outro time enquanto o prazo do seu contrato atual ainda não terminou. Há também situações em que o jogador se aposenta em uma equipe, e caso ele retorne à profissão jogando em outra organização em menos de 30 meses, ele precisará pagar esta multa. Quando a transferência é nacional, o valor é limitado a ser 2 mil vezes maior que a média salarial do pro player. A nova organização que ele representará pode assumir a dívida. Nos casos internacionais, o valor poderá ser estipulado entre jogador e clube.
- Compensatória: deve ser paga pela organização ao pro player. É necessária quando o pro player é demitido sem justificativa, precisa sair do time por culpa da organização ou quando deixa a equipe por atrasos no pagamento salarial. Pode ser até 400 vezes maior que a média salarial do jogador.
Direito de imagem
Além do contrato de trabalho, o jogador e a organização podem fazer um contrato de licença de uso de imagem. Isso deixará o clube livre para usar a imagem dos jogadores fora de atividades relacionadas aos jogos, como por exemplo na divulgação e comercialização de produtos da organização, como camisetas.
Lembrando que o valor do direito de imagem não pode superar 40% do salário pago aos atletas, para que os clubes não mascarem as remunerações, diminuindo o valor dos impostos e taxas que devem ser pagos referentes aos direitos dos jogadores, como INSS (Previdência Social, aposentadoria, seguros, etc), FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e outros.
Stream
De acordo com Daniela, é importante que o contrato tenha uma cláusula sobre o tempo de streams que os jogadores devem fazer para a organização. É preciso indicar o “limite máximo para essa atuação, que não deve ultrapassar a jornada [de trabalho] de 44 horas semanais, incluindo as horas dedicadas às competições e aos treinamentos” - a não ser que o jogador queira stremar por conta própria.
O jogador Leonardo “Alocs” Belo disse ao MGG que, em sua passagem pela INTZ, esse assunto não era explicado da forma correta para os jogadores.
“Você sabe que as organizações têm seus direitos de imagem de acordo com o contrato, mas você termina inseguro sobre o que isso quer dizer. E quando ela chega e diz ‘A partir de agora, você vai ter que streamar com o nosso layout, com os nossos patrocinadores’, a maioria dos jogadores nem acaba batendo de frente com isso.” Segundo Alocs, tudo acaba parecendo uma exigência.
O barato sai caro
Ser pro player é o sonho de muita gente. Enquanto jogadores e jogadoras passam horas treinando por conta própria e tentando realizar suas expectativas de entrar no cenário competitivo, algumas organizações não se preparam para as questões que envolvem fazer parte desse mercado. O resultado? Os jogadores saem prejudicados, às vezes, de maneira proposital.
De acordo com Alocs, a impressão que o cenário passa atualmente é totalmente diferente da que um dia uniu tanta gente.
“No começo, a gente só tinha um sonho e os próprios organizadores também tinham esse sonho. Hoje, eu não acredito mais que as organizações estejam atrás disso. É claro, eles querem ganhar, é o sonho deles de crescer, mas antes era diferente, mais puro e simples.”
“Hoje elas querem ser estáveis, crescer, ter um nome maior, porque obviamente vai gerar mais dinheiro, e com isso eles podem montar times melhores para os jogadores. As organizações estão ficando mais gananciosas, entraram várias no cenário que nem curtem mesmo participar do cenários dos eSports. São empresários que nem entendem o que está acontecendo, e é aí que está o perigo. Eu ouvi muito jogador novato dizendo que teve problema com isso.”
Em um mundo ideal, todos deveriam ter acesso a advogados para receber uma ajuda de extrema importância na hora de assinar um contrato.
Como nem todos podem contar com o auxílio desses profissionais, Luciana deu alguns conselhos para os futuros pro players. É muito importante saber “quem está te contratando, reputação do contratante e quem são as outras pessoas que já trabalharam para ele. Se atentar para a questão da carga horária, saber os benefícios, se o sistema te oferece segurança, se existe multa contratual e se você está livre para ir para qualquer lugar ou preso no contrato, quase devendo sua vida, como se não pudesse sair depois.”
Além disso, Alocs sugere aos times que estão entrando no cenário que organizem-se entre si, procurando alguém de confiança para gerenciar a equipe. Quando elas garantirem um espaço nas ligas e torneios principais, devem começar a avaliar propostas de clubes.
Como agir diante de uma organização que não cumpre suas obrigações?
Você ou alguém que você conhece foi prejudicado pela própria organização?
Segundo Luciana, antes de comunicar o que aconteceu a um advogado ou até mesmo antes de fazer uma denúncia em redes sociais, o mais importante é reunir provas documentais - como contratos e testemunhais como colegas de equipe e pessoas que trabalhavam no clube ou moravam na gaming house.
Um exemplo disso, foi a denúncia que os ex-jogadores da SemXorah fizeram contra o dono da organização. Eles apresentaram prints de diversas conversas com o clube, para sustentar o caso.
Por esse motivo, é muito importante que o contrato de trabalho seja levado a sério por ambos os lados. Na INTZ, Alocs precisou ameaçar a organização com um processo por causa de algo que poderia ter prejudicado sua carreira.
“Na época em que joguei na INTZ, era comum nós termos uma renovação automática do contrato, o que não é algo legal pros jogadores. Se até duas semanas antes da recisão contratual, você não pedisse para cancelar a renovação automática, ela era renovada por mais um ano. Eu pedi duas vezes, pessoalmente, para que isso não acontecesse, mas como não haviam registros, porque não foi formal, por email ou carta, quando eu fui tirado da line-up principal da INTZ, eles queria me manter preso na organização, sem jogar!”
“Eu tive uma discussão com eles, que negaram que eu tinha feito o pedido. Depois de muita conversa, papo e de começarmos a pensar em chamar a justiça, eles cederam. Eu não fiquei com nenhum ressentimento, mas me estalou o pensamento de que tem muita gente querendo se aproveitar das coisas. Era como se eu fosse um peixinho perto de um monte de tubarões, então comecei a ter mais cuidado a partir daquele momento.”
Por causa dessas situações, Luciana acredita que “é muito importante que se crie uma regulamentação específica para o eSport, para que nem o atleta e nem o contratante sejam prejudicados” em casos que merecem estudo e cautela.
Para auxiliar o mercado, o projeto de lei (PL) 383/2017 de autoria do senador Roberto Coelho Rocha (PSDB-MA) procura regulamentar a prática dos esportes eletrônicos no Brasil e reconhecê-los como um esporte.
Recentemente, a ideia foi aprovada pela Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado, mas o PL ainda precisa ser aprovado pela Comissão da Educação, Câmara dos Deputados e Presidência da República.