Jogos competitivos online deixaram de ser diversão e um momento de alívio de rotina para muitos. O motivo? Ao invés de logar e se deparar com um ambiente saudável e amigável, diversos jogadores encontram um cenário tóxico e nocivo.
Toxicidade nos games não é uma novidade: provocações e insultos fazem parte da vida da grande maioria dos jogadores que se aventuram em títulos multiplayer. Porém, dado o momento social delicado tanto do Brasil quanto de outros países do mundo, esses ataques têm sido cada vez mais incisivos e traumatizantes.
Este que vos escreve, por exemplo, estava afastado de títulos competitivos em equipe há anos devido a experiências desagradáveis com League of Legends (LoL), Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO) e afins. Entretanto, com o lançamento de Valorant (FPS da Riot Games) em junho de 2020, a vontade de testar e me juntar a amigos para jogar gritou mais alto, e assim me aventurei em algumas partidas que realmente geraram muito divertimento, mas o resultado do contexto geral foi entender que talvez demore ainda mais tempo para mergulhar em qualquer game multiplayer online novamente.
Para entender melhor porque exatamente esses comportamentos acontecem, conversei com Alessandra Dutra, psicóloga com mais de 28 anos de carreira e passagens em equipes como Red Canids, além de ser membro do Comitê Olímpico Brasileiro. Suas explicações apontaram a toxicidade não como um problema pontual, mas de toda uma geração.
Toxicidade em números
De acordo com um estudo publicado pela ONG Anti-Defamation League (ADL) e Newzoo, empresa especializada em inteligência de mercado, pelo menos 74% dos jogadores de games multiplayer online tiveram experiências com algum tipo de toxicidade, sendo vítimas de comportamentos como provocações, assédios, ameaças, perseguições ou outros. A taxa mais alarmante é que 29% do total do público teve informações pessoais divulgadas na internet - um dos traumas que mais causa desequilíbrios, impactando relacionamentos interpessoais, trabalho e saúde mental.
“As pessoas se sentem muito mais à vontade e desenvolvem personagens que realizam todas as frustrações, idealizações e fantasias ‘censuradas’ no dia-a-dia no ambiente online, afinal, não há nenhum filtro quando não se acaba interagindo presencialmente e ninguém está te vendo”, explica Dutra.
No recorte utilizado pela pesquisa da ADL, foram citados diversos jogos - entre eles Minecraft e Grand Theft Auto (GTA) - mas, sem gerar surpresas, os títulos que promovem experiências puramente competitivas são os que ocupam o topo do ranking de casos problemáticos: Dota 2, CS:GO, Overwatch, PUBG, LoL e outros.
As ferramentas de comunicação dos próprios jogos que, mesmo criadas com o intuito de facilitar o diálogo e organização das equipes, foram as apontadas como as mais utilizadas por jogadores tóxicos para projetar provocações, mensagens de ódio ou discriminações, seja por texto ou voz - respectivamente 42% e 40% das vezes.
De acordo com Dutra, este é justamente o ponto de maior desgaste para qualquer jogador, “o maior ponto de estresse está na relação e interação com os demais players”. Contato este que, quando negativo, gera ainda mais desdobramentos como frustração, depressão e ansiedade.
Não é à toa que grande porção dos jogadores decide evitar ou se afastar definitivamente de certos jogos - respectivamente 19% e 23%, comportamento responsável por deixar algumas comunidades de títulos com a reputação de tóxicas.
Ambiente competitivo é um catalisador?
“No Brasil existe uma coisa muito interessante: a grande diferença entre espírito competitivo’ e ‘competidor’. Nós não sabemos competir”, foi o que me foi respondido quando questionei sobre a possibilidade do ambiente competitivo de jogos online ser um fator de agravamento para esse comportamento.
O embasamento histórico que justifica a afirmação é coerente, compreensível e ajuda a entender o motivo pelo qual o aspecto competitivo hoje tomou uma dimensão tão tóxica. De acordo com a psicóloga, o problema permeia toda uma geração de pessoas e não apenas aos jogadores.
“Durante muito tempo, o brasileiro entendeu ‘competição’ como um modo de comparação. Isso gerou muita pressão, muito julgamento. Essa geração, que sofreu com esse julgamento externo, acabou prometendo para ela mesma que, quando tivesse filhos [a geração da maioria dos pro players, que tem entre 18 e 25 anos], o mesmo não aconteceria. Com a falta disso vinda dos pais, essas pessoas começaram a criar uma espécie de auto julgamento”.
Segundo ela, isso tudo combinado com o aspecto competitivo de qualquer modalidade gera um ambiente tóxico e nocivo com jogadores se cobrando o tempo inteiro, resultado agravado quando tudo acontece em equipe, situação na qual são geradas duas “cargas”: o medo de errar por medo do julgamento alheio e o medo do outro errar, prejudicar o seu jogo e frustrar.
Essa situação que acomete a geração é testemunhada diariamente em diversos âmbitos e nos esports não é diferente, chegando até aos escalões mais altos de competição. Basta lembrar de pro players punidos por comportamentos do gênero, casos famosos como os de Félix “xQc” Lengyel, expulso da Dallas Fuel na Overwatch League em 2018 mesmo sendo um dos grandes destaques da liga, ou mesmo do brasileiro Filipe "Ranger" Brombilla, suspenso por uma partida do Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLoL) enquanto membro do Flamengo.
Não só jogadores profissionais, mas também criadores de conteúdo, ajudam ainda mais a espalhar este tipo de mensagem. Nas palavras de Dutra, “a partir do momento em que você é um criador, você deve ter a noção de qual o seu papel. Naquele momento você exerce uma liderança pelo exemplo. Você terá seguidores porque existe um perfil de pessoas que se identifica com você. O que chama essa atenção? Precisamos de líderes mais positivos. Esses influenciadores devem pensar em qual seu legado e tomar muito cuidado”.
Para que serve o ambiente competitivo?
Outro fator recorrente em games online é a “normalização” da toxicidade, com discursos que taxam jogos - principalmente competitivos -, como ambientes propícios para isso, afinal, estão todos lá para ganhar… mas será mesmo?
Quando indagada sobre isso, a psicóloga fez uma analogia entre os títulos em questão e uma partida de futebol entre amigos, a famosa “pelada”, depois de um dia de trabalho. “Para um pode ser uma maneira de desestressar, para outro, aquilo é uma forma de se relacionar socialmente, para outro, o momento de testar suas habilidades. É preciso ver o que significa para cada um estar ali”.
De acordo com ela, isso pode desestabilizar questões importantes de comunicação e gerar efeitos negativos na equipe, sendo composta por pessoas conhecidas ou não, ainda mais combinado com todos os fatores citados anteriormente no caso de jogos online (falta de relação presencial, auto julgamento e influências).
É claro que isso não passa despercebido pelas desenvolvedoras, que publicamente trabalham em medidas para combater este tipo de problema, seja com Códigos de Conduta mais rígidos, matchmaking refinado ou reforços em mecânicas de denúncias - exatamente o que foi sugerido no estudo da ADL, divulgado em 2019, no qual 62% dos entrevistados pediram às companhias que fizessem o possível para tornar o ambiente de seus jogos mais seguros e inclusivos.
Para tal, muitos jogos apresentam maneiras de filtrar players por meio de sua conduta in-game, como o nível de honra em LoL, nível de confiança em CS:GO, boletins de conduta em Dota 2 e outros, mas é de consenso geral que tudo isso ainda está longe de acabar com o problema.
Como combater a toxicidade?
Competitivos ou não, games são entretenimento para a grande maioria de seus jogadores, que buscam alívio em suas rotinas e podem encontrar também nos games situações frustrantes e exigentes, agravando situações vividas principalmente pela faixa etária que costuma entrar em contato com títulos de alta performance: jovens adultos.
Segundo Dutra, um dos comportamentos mais típicos e naturais desta idade é a crise existencial (quando a pessoa se questiona como ser humano), que, aliada ao estresse criado pelo cotidiano e possivelmente continuado por um game, pode gerar um ciclo vicioso penoso, agravado pelo ambiente tóxico.
Para combater este tipo de resposta, é necessário que ocorra algum tipo de “blindagem” ou que o jogador se cerque de pessoas com pensamentos positivos, uma vez que, ao competir em um game online, o player entra em um estado emocional especial, que o torna facilmente influenciável pelos outros, podendo ser “contaminado” por boas experiências.
A psicóloga conclui o pensamento sobre o assunto dizendo que “onde há muitos problemas, há também muitas soluções. Precisamos de tempo para processar tudo isso, e é normal que leve esse tempo. (...) O mundo dos esports tem muito poder, ele só precisa ser ‘higienizado’ para que este seja usado de forma positiva.”