O Projeto de Lei do Senado Federal de número 383 de 2017 (PL 383/2017), elaborado pelo senador Roberto Rocha (PSDB/Maranhão), é uma das iniciativas do governo com objetivo de regulamentar a prática dos esportes eletrônicos no Brasil. As poucas páginas do documento não são claras sobre as motivações para tal medida e a recente emenda que procura proibir jogos considerados violentos assustou a comunidade dos esports.
Para esclarecer os principais pontos do PL 383/2017, o Millenium conversou com Nicholas Bocchi, especialista pós-graduado em Direito Desportivo, membro do Conselho Nacional de Direito Desportivo do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo, professor e palestrante de Direito Esportivo.
Como está a situação do esporte eletrônico nas leis brasileiras?
O PL 383/2017 tem como objetivo regulamentar a prática esportiva eletrônica no Brasil ao criar uma lei específica para os esports. Além dele, há outros dois projetos de lei que falam sobre o assunto, mas diferente do 383, eles apenas criam alterações na Lei Pelé (nº 9615 de 1998), que é utilizada como referência para os esportes considerados tradicionais, como futebol, vôlei, basquete, entre outros.
O mais antigo deles é o PL 3450/2017 , do deputado federal João Henrique Holanda Caldas (PSB/Alagoas), que está na Câmara dos Deputados e quer inserir um 5º inciso no artigo 3º da Lei Pelé para definir o que é esport. “Desporto virtual, assim entendido jogos eletrônicos transcorridos individual ou coletivamente, contra a máquina ou em rede, como também a competição entre profissionais e amadores do gênero”.
Os incisos do 3º artigo da Lei Pelé descrevem em quais manifestações da sociedade é possível identificar os esportes acontecendo. São elas:
- 1º Inciso - Desporto educacional: quando o jogo é utilizado de maneira educacional para promover o “desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer”
- 2º Inciso - Desporto de participação: quando o jogo é praticado de forma voluntária, mas não da maneira profissional como a sociedade está acostumada a ver. Um bom exemplo são as ligas universitárias
- 3º Inciso - Desporto de rendimento: quando o jogo é praticado de acordo com as regras da Lei Pelé e de normas nacionais e internacionais, com “a finalidade de obter resultados”. Aqui, se encaixam os jogadores de esportes tradicionais e - dependendo da interpretação da lei - até mesmo os pro players
- 4º Inciso - Desporto de formação: quando é ensinado como se pratica o jogo, como por exemplo escolas de base para esportes ou programa Preparando Campeões da CNB
O outro projeto é o PL 7747/2015, da deputada federal Mariana Carvalho (PSDB/Rondônia), que está na Câmara dos Deputados e também quer modificar a Lei Pelé, acrescentando ao 3º artigo o “desporto virtual, assim entendido como jogos eletrônicos transcorridos individual ou coletivamente, contra a máquina ou em rede, bem como a competição entre profissionais e amadores do gênero”.
Na prática não há diferença alguma entre os dois documentos acima, apenas o fato de que o primeiro acrescenta um inciso e o outro define esports diretamente em um artigo. Além disso, para Nicholas estes projetos de lei não são tecnicamente legais, uma vez que o esporte eletrônico já pode ser reconhecido dentro da Lei Pelé sem a necessidade de eles serem aprovados. Uma prova disso é como o esport se manifesta dentro de todos os incisos do 3º artigo da Lei Pelé.
"É inútil, porque se você analisar as leis que já existem, verá que o esport já é esporte. Porém, não é todo mundo que considera e interpreta a lei dessa forma e hoje há uma grande insegurança no mercado em relação a isso”, explica o advogado.
De acordo com Nicholas, a incerteza surge porque não é possível saber como seria julgado um processo que envolvesse os esports, já que profissionais do direito podem ter visões diferentes sobre o assunto e consequentemente interpretar a lei de maneiras distintas.
Para o advogado, isto poderia ser resolvido se houvesse um grande histórico de casos sobre o assunto, o que resultaria em uma jurisprudência, que é um conjunto de decisões e interpretações de leis que pode ser consultado de acordo com a situação de cada caso. O problema é que este caminho é demorado. Segundo Nicholas, “uma lei que já dissesse ‘aos esportes eletrônicos será aplicado tal prática legislativa’ evitaria toda essa insegurança”.
Artigo por artigo: Quais são os objetivos do PL 383/2017?
Diferente dos projetos de lei 3450/2017 e 7747/2015, o 383/2017 não nasceu na Câmara dos Deputados e sim no Senado Federal, instituição que tem como principais funções propor, discutir e aprovar novas leis. Cada senador é um representante de um estado (ou do Distrito Federal) dentro do poder Legislativo.
Quando um projeto de lei é criado no Senado, ele deve ser discutido até receber uma versão final, então enviada para a Câmara dos Deputados. Se ele for modificado, deve voltar ao Senado para ser novamente discutido e atualizado e então seguir para a o Presidente da República, que deve vetar ou aprovar o projeto. Se o PL não for alterado na Câmara dos Deputados, então é enviado diretamente para a presidência.
O projeto original, criado pelo senador Roberto Rocha, define em seu 1º artigo o esporte eletrônico como:
“Entende-se por esporte as atividades que, fazendo uso de artefatos eletrônicos, caracteriza a competição de dois ou mais participantes, no sistema de ascenso e descenso misto de competição, com utilização do round-robin tournament systems, ou knockout systems, ou outra tecnologia similar e com a mesma finalidade.”
O 2º artigo define que os praticantes do esporte eletrônico passarão a ser chamados de atletas, enquanto o 3º artigo apresenta uma série de valores que devem ser observados nos esports, como a promoção da cidadania, prática esportiva educativa, entre outras. Além disso, o artigo define que:
“É livre a atividade esportiva eletrônica, visando torná-la acessível a todos os interessados, de modo que possa promover o desenvolvimento intelectual, cultural esportivo contemporâneo, levando, juntamente a outras influências das Tecnologias da Informação e Comunicação – TIC, à formação cultural e propiciando a socialização, a diversão e a aprendizagem de crianças, adolescentes e adultos.”
O 4º artigo do PL 383/2017 indica o fomento dos esports por meio de órgãos como confederações, federações, ligas e entidades associativas que “dentro das suas competências normatizam e difundem a prática do esporte eletrônico”.
No 5º artigo, Roberto Rocha sugere a criação do “Dia do Esporte Eletrônico”, que passaria a ser comemorado em 27 de junho (utilizando como justificativa o fato da empresa Atari ter sido fundada no mesmo dia, em 1972) e para finalizar, o 6º artigo define que, caso aprovado, o projeto entraria em vigor na mesma data de sua publicação e não teria um período de adaptação.
A primeira alteração do projeto: o Artigo 4º
Após ser apresentado no Plenário do Senado Federal, ficou definido que o projeto 383/2017 precisaria passar pelas Comissões de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática; e de Educação, Cultura e Esporte, sendo esta última a que definirá a aprovação do projeto, para que siga para a Câmara dos Deputados.
Em abril de 2018, a Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática aprovou o PL com uma emenda - modificações sujeitas a aprovação, feitas com a intenção de melhorar o projeto - proposta pelo senador Davi Alcolumbre (DEM/Amapá) que alterou algumas partes do documento, especificamente o 1º, 2º e o 4º parágrafos.
Com a emenda, o 1º artigo passa a dizer apenas que a prática da atividade esportiva eletrônica obedecerá aos artigos daquela lei e deixa de definir o que é esport. Em seguida, o 2º artigo passa a conter a explicação de esporte eletrônico: é “a prática desportiva em que duas ou mais pessoas ou equipes competem em modalidade de jogo desenvolvido com recursos das tecnologias da informação e comunicação”.
Além disso, o artigo define que os jogadores devem ser chamados de atletas e que o esporte eletrônico profissional deve seguir às regras nacionais e internacionais aceitas pelas entidades de administração do desporto, ou seja, um campeonato de League of Legends no Brasil deve seguir às regras da entidade que o organiza e/ou administra - a Riot Games.
O artigo 3º do projeto mantém os valores que devem ser observados nos esports, enquanto o 4º sofreu uma grande mudança, que afirma que “o esporte eletrônico será coordenado, gerido e normatizado por ligas e entidades nacionais e regionais de administração do desporto”, questão parecida com o que se diz no 2º artigo, mas com acréscimo de aspectos de organização e administração, tirando das confederações e federações o poder sobre os esports.
De qualquer maneira, Nicholas explicou que os times não são obrigados a fazer parte de órgãos como confederações e federações. Sendo assim, nenhum clube seria forçado a participar dessas instituições.
Neste caso, as próprias entidades que já organizam o cenário competitivo dos mais diferentes jogos, como por exemplo a Riot Games, Valve e Ubisoft, seguem com autonomia para definir como funcionarão regras, competições, regulamentos, entre outros aspectos.
Para Nicholas, esta modificação é bastante importante, pois de acordo com o artigo 217 da Constituição Federal, é dever do Estado somente fomentar as práticas desportivas formais e não formais. A organização e o funcionamento delas devem ser feitas com autonomia pelas entidades desportivas dirigentes.
Isso significa que questões administrativas e organizacionais relacionadas aos esports não poderiam, de maneira alguma, sofrer intervenções do governo.
Além disso, o parágrafo único do artigo 4 diz que o esporte eletrônico poderá ser organizado em confederações e federações, mas como dito anteriormente, nenhum time é obrigado a fazer parte deste tipo de instituição.
Uma nova emenda: A proibição dos jogos violentos
Após a primeira emenda ser aprovada na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática, o projeto foi encaminhado para a Comissão de Educação, Cultura e Esporte, que precisa aprovar o PL para que ele seja levado à Câmara dos Deputados.
Em 3 de junho de 2019, uma segunda emenda foi adicionada ao projeto. A Emenda 2 diz que é necessário acrescentar o seguinte parágrafo ao artigo 1º:
“Não se considera esporte eletrônico a modalidade que se utilize de jogo com conteúdo violento, de cunho sexual, que propague mensagem de ódio, preconceito ou discriminação ou que faça apologia ao uso de drogas”.
A emenda foi proposta pelo senador Luis Eduardo Grangeiro Girão (PODE/Ceará), que foi presidente do Fortaleza Esporte Clube em 2017. Como justificativa para esta modificação, o senador utilizou o 4º inciso do 3º artigo do PL 383/2017 que fala sobre os objetivos do esporte eletrônico: “combater a discriminação de gênero, etnias, credos e o ódio, que podem ser passados subliminarmente aos sujeitos jogadores nos jogos”.
Para o senador, jogos com conteúdos violentos, de cunho sexual, que propagam mensagem de ódio, preconceito ou discriminação ou que façam apologia ao uso de drogas não estão de acordo com o 4º inciso.
“O esporte é uma prática voltada à saúde dos seus praticantes e não à deterioração de seus corpos e mentes, como o são as drogas. Se os esportes são uma ferramenta de integração social, os jogos com mensagens de ódio, preconceito e discriminação são exatamente o oposto disso. Não podemos reduzir os esportes ao argumento da competição. Esse é um de seus elementos, tão importante quanto os demais, mas competição sem regras não é esporte. Competição sem valores morais não é esporte. Competição que não promova a saúde física e mental de seus praticantes não é esporte”, diz o documento de proposta da 2ª emenda.
A possibilidade desta emenda ser aprovada assustou a comunidade dos esports. O que seria dos pro players de Counter-Strike: Global Offensive brasileiros, por exemplo? Eles perderiam seu emprego do dia para a noite?
De acordo com Nicholas, os torcedores e jogadores das modalidades consideradas violentas seriam prejudicados caso o projeto seja aprovado, isso porque a legislação esportiva oferece diversas vantagens, como o Contrato Especial de Trabalho Desportivo ao jogador e o Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei nº 10.671/2003) ao torcedor. Essas vantagens podem ser reinvindicadas em uma ação judicial. Quando esta ação chegasse ao Supremo Tribunal Federal, este órgão poderia determinar que a decisão da segunda emenda fosse inconstitucional, o que cancelaria a validade dela.
Vale lembrar que jogos como o CS:GO, de tiro em primeira pessoa que carregam o conceito de terroristas versus contra terroristas, podem parecer violentos à primeira vista por conterem elementos visuais como armas de fogo e bombas, mas transformam positivamente a vida de muitas pessoas.
O professor Luiz Carlos Marostica dá aulas de informática no Centro para Crianças e Adolescentes, local que tem como objetivo oferecer proteção social à criança e adolescente em situação de vulnerabilidade e risco. Lá, ele promove pequenos campeonatos de Counter-Strike 1.6 para entreter seus alunos e ajudá-los a desenvolver conceitos de sociedade, equipe, estratégia, entre outros.
Kleber Luiz das Graças, de 31 anos, superou seu vício em cocaína graças ao Counter-Strike, assim como o jogador e usuário do Reddit Nuke Veteran.
Em 2019, o renomado jornal científico Royal Society Open Science publicou um estudo feito pela Universidade de Oxford sobre como a agressividade de jovens não está relacionada com o fato de eles jogarem games considerados violentos. Além disso, a Universidade de York publicou dois estudos sobre o tema, afirmando que não há conexão entre games e violência e que jogos estão ligados a altos níveis de inteligência.
De acordo com Nicholas, também seria necessário discutir de fato o que faz um jogo ser considerado violento. Para o advogado, esta questão tem mais a ver com a regulamentação dos jogos do que com a dos esports.
Em reunião realizada em 4 de junho, a discussão sobre o projeto de lei foi retirada de pauta de acordo com o histórico de andamento do processo. Isso significa que não há uma nova data para que as reuniões sobre o projeto voltem a acontecer. Até o momento, a segunda emenda não foi aprovada.
É importante lembrar que se ela for aprovada não terá efeito imediato, pois todo projeto de lei precisa ser aprovado para começar a ter validade, ou seja, ter uma versão final aprovada no Senado, na Câmara dos Deputados e na Presidência da República. Se todo o projeto for aprovado com a segunda emenda, ainda há maneiras de impedir que ela de fato seja válida.
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Em 2 de julho de 2019, a Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE) aprovou o projeto de lei 383/2017 no Senado Federal. A partir de agora, os senadores podem propor mudanças dentro do prazo de 5 dias. Caso nenhuma mudança seja proposta, o projeto segue para a Câmara dos Deputados, onde será aprovado - com emendas ou não - ou vetado. Se aprovado, o projeto segue para uma nova aprovação, desta vez por parte da Presidência da República. Se vetada, a proposta volta para o Senado, onde deverá ser rediscutida, para então seguir direto para a Presidência.
A versão do projeto que foi aprovada pela CE exclui da proposta o 5º artigo, que falava sobre a criação do Dia do Esporte Eletrônico, utilizando como argumento o fato de que projetos de leis não são a maneira correta de instituir datas comemorativas. Além disso, a 2ª emenda do projeto, que fala sobre a proibição de jogos considerados violentos, foi rejeitada.
Ainda assim, foi acrescentado ao 2º artigo o seguinte parágrafo: "Considera-se esporte eletrônico a modalidade que não se utilize de jogo com conteúdo violento, de cunho sexual, que propague mensagem de ódio, preconceito ou discriminação ou que faça apologia ao uso de drogas, definida na forma de Decreto". Os detalhes do projeto, como, por exemplo, estabelecer critérios para definir quais jogos deverão ser considerados violentos, devem ser decididos pelo Presidente da República.
Durante a reunião feita para discutir o projeto, a senadora Leila Barros (PSB-DF) afirmou que era contra a aprovação da proposta.
"Eu acho que me sinto uma legítima representante do esporte. Eu queria deixar bem claro que são 'jogos' eletrônicos. Esporte, vocês vão ver lá Cuba e Estados Unidos competindo dentro de uma quadra e cessando todo tipo de conflito. Desculpa, isso [esports] não é esporte, porque esporte tem uma preparação também. Tem que ouvir a comunidade esportiva também. O alto rendimento é isso, é uma entrega. Quem é do esporte abdica muito da sua vida, inclusive pessoal, para representar um país", disse a senadora.
Você tem dúvidas sobre o projeto de lei 383? Escreva-as no espaço para comentários.