Superar obstáculos para alcançar um objetivo é tarefa recorrente nos games, sejam essas pedras no caminho os oponentes dentro de um servidor ou personagens controlados pela inteligência artificial dos jogos de campanha, mas também resume, em parte, a história de vida do streamer Moisés Alves, mais conhecido hoje como Mose, um dos principais streamers negros do Brasil. O criador de conteúdo, que começou no de Free Fire e hoje também produz materiais de jogos como CS:GO, Valorant e NBA 2K, almeja que o universo das streams apresente um dia a mesma diversidade que existe no Brasil fora das lives focadas em game.
Nascido e criado no município de Mesquita, na Baixada Fluminense, o criador de conteúdo e influenciador da FURIA vive, em suas próprias palavras, o “melhor momento da vida”, mas precisou encarar diversas dificuldades até se consolidar como um dos principais streamers negros do país e uma figura vocal no combate à discriminação racial num meio em que ataques contra minorias representativas ainda assolam plataformas de streaming.
Em entrevista ao MGG Brasil, Mose fala sobre a paixão pelos games desde a infância, relembra o crescimento de seu canal na Twitch durante a pandemia, fala sobre a importância da Wakanda Streamers - coletivo de streamers negros -, FURIA e Gaules em sua carreira e comemora a mudança para São Paulo, que, comemora, abrirá ainda mais oportunidades profissionais.
'O cara mais azarado do mundo'
Antes de se tornar um criador de conteúdo reconhecido, porém, Mose se considerava “o cara mais azarado do mundo”, e chegou a desistir do sonho de viver como streamer. Após bater na trave em concursos para sargento do Exército e da Marinha, nos quais ficou a um ponto da aprovação, e ficar a uma posição de ser chamado para o curso de Letras: Português/Inglês da Universidade Federal do Rio de Janeiro após prestar o ENEM, ele começou a trabalhar como garçom.
Com a chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil, porém, bares e restaurantes em todo o país interromperam por meses o atendimento a clientes nas dependências desses estabelecimentos, e Mose acabou demitido em decorrência da mudança no modo de vida de pessoas em todo o mundo, causada por uma doença que já matou mais de 600 mil pessoas no Brasil. Foi somente aí que ele decidiu apostar as últimas fichas como streamer.
“Eu cheguei a tentar de algumas formas começar nessa carreira, mas nunca deu muito certo, então abandonei essa ideia por muito tempo e voltei a apenas consumir conteúdo de games e a jogar casualmente, mas sem ter naquilo um meio de vida. Quando eu comecei a trabalhar, eu consegui juntar uma grana para comprar um computador que pudesse rodar jogos mais novos. Também cheguei a prestar alguns concursos públicos para buscar uma estabilidade financeira maior, pois viver de games sempre me pareceu uma realidade muito distante e eu precisava dessa segurança”, relata.
“Nessa época, eu me sentia o cara mais do mundo, pois nada do que eu fazia dava certo, e pior: era sempre por pouco. Depois disso, consegui um emprego como garçom, e foi aí que eu comecei a juntar um dinheiro para montar um computador que não era excelente, mas já permitia abrir uma live, interagir com a galera e jogar games não tão pesados, que meu PC aguentasse. Isso foi de 2019 para 2020, e eu conciliava a rotina de trabalho com as lives. Como eu trabalhava à noite, fazia lives que começavam de manhã e iam até mais ou menos às 14h. Depois eu ia para o trabalho como garçom e só chegava em casa de madrugada. Meu tempo de descanso eu usava para streamar.”
Com a demissão do emprego de garçom e uma rotina extremamente restritiva, especialmente nos primeiros meses de pandemia, Mose passava quase todo o tempo em casa, o que lhe deu a oportunidade de finalmente se concentrar 100% na criação de conteúdo. Após uma conversa com a mãe, foi estabelecido então um prazo para que Mose começasse a ganhar dinheiro com as lives. Caso contrário, seria preciso virar a página e se concentrar em novos objetivos.
“Conversei com a minha mãe, disse para ela que era o que eu queria fazer da minha vida. Ela percebia o quanto eu gostava de ser streamer quando eu conciliava com o trabalho, mas ela me deu um prazo para as coisas darem certo, até mesmo para eu não me frustrar depois. Como sempre fomos uma família humilde, eu não poderia me dedicar 100% como produtor de conteúdo por tempo indeterminado, eu precisava fazer as coisas darem certo”
O começo dessa nova rotina integral não foi dos mais animadores, com as lives raramente ultrapassando a marca de três espectadores: ele próprio, a noiva e uma “terceira pessoa que aparecia na live para trocar ideia”.
Caso George Floyd, Wakanda Streamers e Gaules
No dia 25 de maio de 2020, o assassinato de Geroge Floyd, homem negro morador do estado americano da Carolina do Norte, pelo policial branco Derek Michael Chauvin por asfixia gerou uma onda de protestos nos Estados Unidos por justiça. No mesmo período, o coletivo de streamers negros brasileiros Wakanda Streamers, ganhou visibilidade no Brasil, e Mose, que já havia sido convidado para integrar o grupo por Tales Porphirio, idealizador da iniciativa, finalmente aceitou a oferta.
Aquele foi um período em que diversos streamers com grande número de seguidores na Twitch fizeram raids para criadores de conteúdo que faziam parte da Wakanda Streamers, cujos próprios membros já ajudavam uns aos outros direcionando seu público para outros criadores de conteúdo negros quando encerravam suas transmissões. Nesse período, Mose recebeu algumas raids de Alexandre “Gaules” Borba, maior streamer brasileiro de CS:GO hoje, e viu seu canal na Twtich crescer em número de seguidores. Hoje, mais de 14 mil pessoas acompanham o jovem na plataforma.
“O Tales Porphirio, fundador da Wakanda, já havia me convidado várias vezes antes para eu fazer parte do projeto, até que eu finalmente aceitei. Foi aí que meus números começaram a subir, pois todos se ajudavam muito. Foi um período muito importantes para mim, não apenas pelos números, mas também para perceber que eu não estava sozinho ali, que havia outros streamers negros na batalha e dispostos a se ajudarem. Eu tive um suporte monstruoso, comecei a fazer parte do staff da Wakanda, e ali as coisas começaram a caminhar. Eu passei a atuar como uma espécie de conselheiro, ajudando na organização de algumas coisas e direcionando público para áreas específicas etc. O meu crescimento começou ali e serei eternamente grato a tudo que a Wakanda fez por mim num período que eu precisava muito, e busco retribuir divulgando e gankando outros streamers de lá”, detalha.
“O assassinato do George Floyd e a onda de protestos nos Estados Unidos acabaram tendo grande impacto também por aqui, inclusive no meio das streams. Eu passei a receber muito apoio de gente que eu sempre assisti, inclusive o Gaules. Basicamente, o computador que eu tenho hoje foi comprado com o dinheiro que ele me doou naquele período. Ele fez raids para o meu canal várias vezes naquela época, colocava o link do meu canal no chat dele, e isso também me ajudou a crescer muito. Eu cheguei a ter 13 mil pessoas simultâneas na minha live, um número que era inimaginável para mim antes.”
Fechado com a FURIA
Pouco antes das raids de Gaules, Mose iniciou conversas com a FURIA, organização da qual é streamer e influenciador. Ainda antes da assinatura do contrato, o “namoro” com a org ganhou força após ele receber um raid do perfil oficial da FURIA na Twitch. Mose destaca que desde que passou a representar os Panteras, sua vida mudou em vários sentidos, e não apenas financeiro.
“Já sou streamer da FURIA há pouco mais de 1 ano, e posso dizer que a organização se tornou uma segunda família para mim nesse período, e provavelmente tem sido o período mais feliz da minha vida, e profissionalmente é certamente o melhor. Eu nunca fui tratado apenas como um criador de conteúdo contratado pela organização, as pessoas aqui realmente se preocupam comigo, em saber como eu estou, se preciso de algum equipamento para melhorar a qualidade das lives.
Nesse período, Mose já apresentou ideias e projetos para a FURIA, além de, naturalmente, fazer parte do conjunto de streamers contratados pela organização. Além de maior segurança financeira, Moisés destaca que a abertura para o diálogo e proximidade com toda a infraestrutura de profissionais da tag o fizeram se sentir à vontade desde que foi contratado.
“O Jaime Pádua, o André Akkari (donos da FURIA) e todas as pessoas do staff são acessíveis, abertas a conversar, e isso faz muita diferença. Foi uma organização que entrou no momento certo da minha vida, e não falo isso apenas por uma questão financeira, o que certamente é importante. Existe amizade, companheirismo e carinho de fato, e esse tipo de coisa você só sente conversando com as pessoas. Minha criatividade e minhas ideias são incentivadas”
Representatividade e combate ao racismo
Embora tenha realizado hoje o sonho de viver como streamer, Mose tem consciência de que vive uma realidade não compartilhada pela maioria dos streamers negros. Ele, que já sofreu uma onda de ataques racistas durante uma de suas lives e conhece outros criadores de conteúdo que desistiram de streamar por causa do racismo, luta hoje para não ser uma exceção e que outros criadores de conteúdo como ele consigam viver das lives e cresçam num meio que ainda é dominado por um “padrão”, especialmente quando é feito o recorte de streamers de maior sucesso do país.
“Hoje, eu faço parte desse círculo, e sei que represento também o sonho de outras pessoas que almejam chegar lá e têm em mim uma inspiração, uma referência. Ainda são poucos os streamers negros de sucesso, e isso precisa mudar, pois o que vemos na Twitch, no YouTube não reflete o que a realidade do Brasil é. Pretos e pardos são maioria no país, mas uma minoria quando falamos de criação de conteúdo de games, pois o acesso a um videogame de nova geração ou PC de ponta é muito caro. E mesmo quando você tem os equipamentos, ainda precisa enfrentar o racismo e a discriminação”, conta.
Para Mose, a desigualdade existente no país é refletida na Twitch. Além da falta de diversidade racial, minorias representativas sofrem ataques recorrentemente na plataforma, o que inclusive gerou um movimento global movimento global "Day Off Twitch", que no dia 1 de setembro contou com adesão de streamers do mundo inteiro e consistiu em um dia sem lives aderido por milhares de criadores de conteúdo.
No dia 1º de setembro, o "apagão" de lives causou uma queda 10 milhões de horas assistidas em relação à semana anterior, ou uma redução de 15% na audiência. No dia 25 de agosto, a Twitch registrou mais de 65,17 milhões de horas assistidas, contra 54,88 milhões em 1º de setembro, reforçando que a mobilização teve impacto significativo na audiência da plataforma.
“Existe um padrão dos streamers de maior sucesso que sabemos bem qual é, e meu sonho é que a gente tenha mais diversidade nesse meio, com mais negros, pessoas LGBTQIA+ e PCDs ocupando posições de destaque. Quero que mais gente que veio de baixo possa viver disso, quero que a minha história se repita com mais gente da minha cor. Isso me motiva absurdamente. Desejo ajudar mais streamers negros e de outras minorias representativas de todas as formas que estiverem ao meu alcance. Quero ser um modelo e ajudar a abrir caminho para outras pessoas como eu.”
Sobre os ataques racistas que já sofreu, e ainda sofre, Mose conta que muitos amigos e conhecidos já desistiram de fazer lives na Twitch e em outras plataformas exatamente por esse motivo, mas não cogita sob nenhuma hipótese fazer o mesmo. Para ele, permanecer nas lives é, além de profissão, uma postura de resistência.
“Quando você alcança uma maior visibilidade, também vem muito hate (ódio) junto, inclusive com manifestações racistas no chat. Nos últimos três, quatro meses, recebi muitos ataques racistas de bots. Conheço muitos criadores de conteúdo negros que desistiram justamente por causa desses ataques extremamente covardes, mas comigo esses ataques têm efeito contrário, pois fico mais motivado a streamar, continuar crescendo e ajudar outros streamers como eu”, detalha.
“Se alguém acha que isso vai me fazer desistir, eu faço questão de informar que não vai. Isso me dá mais força para persistir, pois não estou fazendo isso só por mim, mas também por muita gente que, mesmo querendo, nunca teve a oportunidade de estar ali. Se hoje eu conquistei alguma coisa, foi pelo apoio que eu recebi, começando pelo da minha mãe, minha noiva e meus irmãos, e eu desejo dar um retorno à minha comunidade, às pessoas que represento. Sem o apoio que recebi, já teria desistido há muito tempo.”
'Não cobro posicionamento, mas faço questão de me posicionar'
Ao mesmo tempo que se mantém firme como um dos poucos streamers negros de destaque do país, Mose considera ineficazes as ferramentas que a Twitch e outras plataformas de lives utilizam para combater manifestações de ódio no chat. Para ele, falta maior empenho no desenvolvimento de funcionalidades que possam identificar os responsáveis pelas raids de ódio e pessoas que se manifestam com conduta discriminatória.
“Eu acredito que a Twitch poderia, e deveria, fazer um trabalho muito melhor no combate às raids de ódio e ataques que acontecem na plataforma, criando ferramentas mais eficazes para evitar essa situação. Após muita pressão no mundo inteiro, eles tomaram algumas medidas, mas acho que ainda é pouco perto do que pode ser feito. A plataforma precisa ser mais combativa, pois é muito fácil criar uma outra conta com um novo e-mail ou programar bots para os ataques de ódio. Existe uma certa proteção hoje, mas ela está muito longe da ideal. Esses ataques são crimes e precisam ser tratados pela Twitch como tais.”
Seja nas lives ou nas redes sociais, Mose se posiciona sobre todos os temas que considera pertinentes, e nunca cogitou adotar uma postura diferente após crescer profissionalmente. Embora ressalte que “ninguém é obrigado” a se posicionar, ele enfatiza que nunca abriu mão dos valores que aprendeu desde criança por atuar num meio no qual muitos outros streamers evitam falar sobre temas como racismo, homofobia ou se manifestar politicamente.
“Muitas pessoas sequer têm o interesse de te conhecer simplesmente por você ser quem é, seja pela sua cor de pele ou orientação sexual, e eu como criador de conteúdo me vejo nessa responsabilidade de conscientizar quem me segue sempre que acho necessário. Não posso obrigar ninguém a se posicionar, mas não abro mão de me posicionar e tentar ter um impacto positivo na minha comunidade. Ser streamer para mim não é só abrir live é jogar. Minha mãe sempre me ensinou desde criança a nunca abrir mão dos meus valores, e eu levo isso para a minha vida e meu papel enquanto streamer”, crava.
Mose começou a fazer lives na Twtich fazendo transmissões de Free Fire, e aos poucos foi diversificando seu conteúdo para outros games, como CS:GO, NBA 2K e Valorant. Sobre o battle royale da Garena, Mose destaca que o título ampliou a acessibilidade a um público que não tinha acesso a PCs Gamers ou consoles de última geração, e que isso despertou incômodo em quem é avesso a um perfil mais diverso de criadores de conteúdo.
“O Free Fire veio para romper com a bolha dos games e dos esports, isso é incontestável. O fato de existir um jogo competitivo acessível mesmo para quem não tem um celular, PC ou console de ponta faz uma diferença absurda num país tão desigual como o Brasil, e é óbvio que isso incomoda quem deseja que as coisas continuem como sempre foram. Com o dólar na cotação atual, ter um PC gamer, que sempre foi caro, está mais caro do que nunca, e o celular às vezes é a única opção que o moleque da favela ou de um bairro pobre tem de jogar. O ideal é que todo mundo pudesse jogar tudo que quisesse, mas não é isso que acontece.”
De casa nova e com planos para o futuro
Agora morando em São Paulo, Mose projeta um crescimento profissional ainda maior. O streamer, que já deixou de fazer lives por constantes quedas de luz e internet em Mesquita, se mostra animado com a nova fase da carreira. Ele destaca que a FURIA o ajudou no processo de mudança para a cidade “onde praticamente tudo acontece” quando o assunto em questão são games e esports no Brasil.
“Estar em São Paulo é um passo muito importante profissionalmente. Agradeço muito ao Espeon (gestor de talentos da FURIA), à Cynthia (Oliveira, coordenadora de streamers da FURIA) e ao Edu (Eduardo Dutra, manager da FURIA no Brasil), que me ajudaram muito nesse processo e possibilitaram essa mudança. Ter o suporte da org nesse momento da minha vida foi fundamental, e espero que essa relação dure muitos e muitos anos, porque estou muito feliz e não me vejo fora daqui”