Rumores bastante confiáveis sobre Grand Theft Auto VI chegaram até a comunidade gamer recentemente, fazendo crescer a ansiedade que mínimas menções ao jogo já causam. É óbvio que todo mundo está ansioso pelo título da Rockstar, afinal de contas, seu predecessor é o terceiro jogo mais vendido da história dos games.
No entanto, algumas das possibilidades vem causando um grande estresse desde já, tanto para quem concorda com elas, quanto para quem não concorda: uma protagonista feminina e um jogo mais alinhado ao que hoje atende pela expressão “politicamente correto”, mas que, pessoalmente, acredito se tratar apenas de “ter ao menos um pingo de educação”.
GTA 6 será um jogo politicamente correto?
De acordo com o jornalista Jason Schreier, que publicou um texto viral em 2018, denunciando a cultura do crunch, movimentação na qual desenvolvedores do jogo trabalham muito além do aceitável para “fazer o jogo acontecer”, na Rockstar, os “desenvolvedores estão sendo cautelosos para não atacar minorias, fazendo piadas sobre grupos marginalizados, em contraste com os jogos anteriores”.
Algumas pistas sobre isso surgiram já há algum tempo, como o fato da Rockstar ter decidido retirar elementos transfóbicos e comentários homofóbicos de GTA V nos consoles da nova geração. Outras foram reveladas recentemente, como o motivo por trás do cancelamento do modo Cops ‘n’ Crooks, que segundo Schreier aconteceu em 2020 porque a empresa acreditou não ser apropriado introduzir no jogo um modo “Polícia e Ladrão” após a morte de George Floyd, um homem negro, ser causada por um policial branco nos Estados Unidos, o que levantou novos debates sobre racismo, violência policial e outros temas no país e no mundo.
Quem não concorda com essas mudanças e decisões acusa um movimento invisível de estar invadindo a Rockstar e plantando a sementinha do politicamente correto na empresa. Para Moira Weigel, pesquisadora associada da Universidade de Harvard, “politicamente correto é um sinônimo de educação''. [...] Para outras, críticas do conceito, politicamente correto quer dizer algo ruim, uma espécie de censura que “impede que as pessoas falem livremente sobre todos os assuntos”.
Segundo ela, o termo se refere simplesmente à linguagem e aos cuidados que se deve ter ao falar para não acabar ofendendo alguém. “Não existe nenhuma organização política secreta forçando as pessoas a falar de certa maneira. É importante lembrar que liberdade de expressão não quer dizer que uma pessoa pode sair por aí ofendendo as outras”, disse a pesquisadora em entrevista ao jornal O Globo.
Eu juro, é possível fazer humor ácido sem ofender minorias!
Os principais comentários que encontrei em uma simples busca pelo termo “GTA 6” no Twitter falam muito sobre um GTA politicamente correto colocar em risco o humor e a grande sátira que o jogo costuma fazer com diversos assuntos.
É inegável que diversas camadas do jogo falam sobre violência policial, pessoas ignorantes e, consequentemente, preconceituosas, mas eventualmente, em um movimento que aconteceu com diversos outros elementos da sociedade nos últimos anos, justamente os ignorantes se apropriaram dessas sátiras e ironias, invertendo seus significados, usando-as para justificar uma série de atitudes deploráveis como discriminar os outros por motivos absurdos como identidade racial, de gênero e orientação sexual.
O que era para ser uma crítica sobre pessoas burras e preconceituosas fez pessoas burras e preconceituosas se identificarem com o jogo e se sentirem validadas para perpetuar por aí atitudes e comportamentos que ferem a existência de parte da sociedade.
Não é possível ter um controle completo sobre como as obras que publicamos serão interpretadas, mas quando as coisas passam a ser analisadas sob uma ótica que ultrapassa os limites da mínima educação que deve haver no mundo, é necessário, sim, controlar alguns aspectos de certas obras, como se estivéssemos recomeçando. O que é um porre mesmo, é como explicar uma piada, não tem graça alguma. Eu gostaria que as ironias de GTA não tivessem sido apropriadas da forma errada , na linha do tempo em que isso aconteceu, esse texto nem mesmo precisaria existir.
Ainda assim, vale lembrar também que histórias podem, sim, retratar pessoas preconceituosas e que façam outros tipos de coisas erradas também. Muitas vezes, pontos sutis ou escancarados indicarão que aquilo é errado e farão o público refletir, pois obras são uma importante forma de ensino, mostrando problemas da sociedade, como eles acontecem, como podem ser resolvidos em pequena e larga escala etc. Desta forma, nada disso significa que a Rockstar não pode fazer sátiras ou colocar piadas preconceituosas nas bocas de seus personagens, mas sim que, talvez, estejam precisando deixar um pouquinho mais explícito que elas são erradas, tendo consequências, tendo outros personagens se impondo contra, tendo uma infinidade de possibilidades.
Desta forma, não acredito que GTA 6 será um jogo politicamente correto, mas sim que talvez tenha mais cuidado para não abrir margem para novas apropriações erradas de suas ideias, fazendo isso de forma a não perder sua essência, mas também com uma preocupação maior em respeitar a vida e a segurança daqueles que pertencem a minorias sociais.
Além disso, como disseram nossos amigos do MGG Espanha, que também escreveram um texto muito bom sobre o tema, é perfeitamente possível fazer humor sem desrespeitar as pessoas, como acontece por exemplo na famosa série The Boys, da Amazon Prime Video.
É bom ver mudanças acontecendo na indústria dos games
As mudanças vêm acontecendo aos pouquinhos e honestamente é um pouco desanimador ver que ainda não tenhamos, como sociedade, chegado em um ponto no qual simplesmente todo mundo se respeita.
Certamente ainda há muito o que mudar, desde racismo, até sexismo, passando por preconceitos contra identidade de gênero, diferença salarial entre homens cisgênero e heterossexuais em relação a mulheres e pessoas da comunidade LGBTQIAP+... e tudo isso não apenas no mercado gamer, mas no mundo inteiro. Acho que não viverei para experienciar essa utopia, mas certamente é bom ver algumas coisas mudando há alguns anos.
As coisas, aparentemente, mudaram na Rockstar com o fim da antiga cultura de crunch e bebedeira no meio do expediente de trabalho.
Elas vem mudando na Riot Games em relação a representatividade de origem, orientação e identidade sexual entre os campeões de League of Legends. E quando as coisas não mudam por bem, mudam como consequência, “doendo no bolso”: recentemente um juiz da Califórnia aprovou o histórico acordo no qual a Riot Games pagará US$ 100 milhões para mais de 2 mil mulheres funcionárias e ex-funcionárias da desenvolvedora que processaram a empresa por discriminação de gênero, assédio sexual e má conduta no ambiente de trabalho - mas não dá para esquecer que isso veio acompanhado de um rumor no qual a Riot teria obrigado uma funcionária a deletar uma foto nas redes sociais em que ela usava biquíni.
Vale lembrar também que há anos a Riot é criticada pela comunidade de League of Legends de sexualizar as campeãs do MOBA em diversas artes. A empresa chegou até mesmo a admitir que houve sexualização no desenvolvimento da personagem Kai'Sa. Isso vem mudando lentamente, mas que sigamos de olho e prontos para reclamar.
Na Activision Blizzard as coisas também vem mudando por consequência. Após diversos escândalos de assédio sexual e moral e discriminação sexista, a empresa fechou um acordo de indenização de US$ 18 milhões (R$ 85,4 milhões) com a Equal Employment Opportunity Commission (EEOC), instituição dos Estados Unidos que tem como objetivo garantir equidade em oportunidades de trabalho no país. A quantia será destinada ao fundo que distribuirá o dinheiro entre funcionários e ex-funcionários afetados pelas práticas abusivas da companhia, que após os escândalos foi adquirida pela Microsoft por US$ 68,7 bilhões.
Para além disso, nos bastidores, ainda acontece muita coisa ruim, muita, muita mesmo! Mas eu também tenho visto mais mulheres indicando outras mulheres para grandes projetos, por exemplo, o que daqui a algum tempo, talvez evite, por exemplo, que outro grande exposed de assédio sexual aconteça, já que teremos mais mulheres cuidando umas das outras no cenário.
E este é um exemplo com mulheres, mas quanto mais pessoas LGBTQIAP+ tivermos no cenário, provavelmente menos homofobia e transfobia teremos, e o racismo também deve diminuir se tivermos mais e mais pessoas pretas, amarelas, indígenas, marrons e de tantas outras etnias neste mercado. E assim, eu espero que a gente chegue na utopia em algum momento.
Mas espera aí, não sejamos tão ingênuos aqui
Atualmente, a maior parte dos países deste planeta que chamamos de Terra vive em um sistema capitalista. Conforme as questões sociais vem avançando ao longo dos últimos e as empresas viram que, pasme, mulheres, pessoas pretas, asiáticas, indígenas, LGBTQIAP+ também têm poder de compra, elas passaram a, “de repente”, se interessar em produzir conteúdo e produtos voltados para estas comunidades.
Assim, nada impede a Rockstar de estar apenas tentando limpar a própria imagem, associada à cultura do crunch e a uma comunidade muitas vezes tóxica, porque muita gente pode choramingar à vontade dizendo que isso é mentira, mas quem “lacra” lucra, sim, muito!
E quando o assunto é dinheiro, ninguém quer ficar de fora. Enquanto uns seguem esperneando contra o politicamente correto supostamente estar contaminando as desenvolvedoras de seus jogos preferidos, a verdade é que estas empresas não veem a hora de faturar mais e mais ao chegar em públicos que antes não chegavam.
Este chegar onde antes não chegava deve ser feito de forma consciente, mudando políticas dentro da empresa, traçando metas e compreendendo a necessidade de evolução da sociedade em relação ao direito de existência e respeito que qualquer pessoa deveria ter no mundo. Mas pode (e provavelmente vai) acabar sendo feito visando o lucro mesmo.
Assim, o que nos resta enquanto comunidade gamer é seguir vigilante em relação aos comportamentos e produtos de toda e qualquer empresa que produz algo que gostamos.