A indústria de jogos independentes no Brasil tem apresentado grande crescimento em quantidade e qualidade nos últimos anos, com títulos como Dandara, Horizon Chase Turbo e, mais recentemente, Unsighted alcançando reconhecimento e visibilidade dentro e fora do país. No gênero de jogos de luta, os títulos indies que mais tiveram sucesso nos últimos anos são estrangeiros, e os melhores exemplos desse fenômeno recente são estrangeiros, como Under Night In-Birth, Skullgirls e Melty Blood: Type Lumina, inclusive com os dois primeiros entrando na lineup principal da EVO, o maior evento dos fighting games nos esports.
Dentro dessa recente abertura da EVO a produções não idealizadas por grandes estúdios, o indie brasileiro Pocket Bravery, da Statera Studio, é a grande aposta dos desenvolvedores Jonathan “Jon Satella” Ferreira e Anderson Halfeld para colocar o país no mapa dos esports não apenas com atletas, mas também com um game de luta 100% desenvolvido no país, mas com ambição de voos internacionais. O primeiro passo nesta direção, inclusive, já foi dado, com o título chamando a atenção e arrancando elogios do americano Justin Wong, maior campeão da história da EVO, com 9 títulos, sendo 8 deles na série Marvel vs. Capcom.
Em entrevista ao MGG Brasil, a dupla fala sobre as principais inspirações para o título da Statera, as dificuldades e desafios relacionados ao desenvolvimento do jogo, que ainda está em fase de beta aberto na Steam, o alcance do game entre os principais criadores de conteúdo de jogos de luta brasileiros e a ambição de criar um “universo Bravery”, que contará tanto com as versões “Pocket” dos personagens, com o tamanho diminuto que lembra o clássico Pocket Fighter, quanto um título futuro em que os “bonecos” terão versões com proporções mais realistas.
O início de desenvolvimento de Pocket Bravery após a frustração com Trajes Fatais
Na raiz do desenvolvimento de Pocket Bravery está uma grande frustração com aquele que parecia o primeiro grande game de luta 100% feito do Brasil, mas cujo desenvolvimento passou por diversos problemas, e cujo estado atual permanece um mistério: Trajes Fatais, da Onamim Studio. Após superar com sobra a meta de arrecadação de R$ 80 mil, com mais de R$ 114 mil doados pelos apoiadores, um dos integrantes do time de desenvolvimento teria desviado cerca de R$ 48 mil.
Em entrevista ao Start UOL em outubro de 2020, Jonathan, que acabou deixando a Onamim Studio após descobrir o golpe, e Onofre Paiva, que permanece no desenvolvimento de Trajes Fatais, relataram que o desvio desse dinheiro comprometeu enormemente a finalização do projeto. O profissional que teria desviado a quantia entrou em um acordo com Onofre e tem pagado o valor de forma parcelada, mas nesse período funcionários da Onamim acabaram dispensados diante da impossibilidade do estúdio em arcar com os salários dos profissionais. Hoje, apenas Onofre permanece no projeto de Trajes Fatais, enquanto Jonathan, que descobriu o desvio de verbas que teria ocorrido no projeto, decidiu voltar seus esforços para os projetos da Statera Studio, entre os quais está Pocket Bravery.
“Não conseguimos bater a meta de arrecadação no Indiegogo, que é uma plataforma de financiamento coletivo ainda pouco conhecida aqui no Brasil e cujo método de pagamento é bem mais complicado que o do Kickstarter, por exemplo. Como o modelo era de tudo ou nada e só arrecadamos 32% do valor almejado (R$ 36 mil de R$ 113 mil), todo o dinheiro foi devolvido aos apoiadores”, relata Jonathan.
“Uma grande parcela dos apoiadores nos ajudou via Mercado Pago porque não conseguiu fazer o pagamento via Indiegogo, e decidiu manter o apoio mesmo depois de não conseguirmos bater a meta de arrecadação. Somos extremamente gratos por isso. Acho que além das dificuldades da plataforma, uma parcela da comunidade ficou naturalmente desconfiada depois do que aconteceu com o Trajes Fatais. É claro que o fato de não termos conseguido bater a meta de arrecadação faz com que o projeto caminhe a passos mais lentos, mas posso garantir que o jogo vai sair. Se tudo der certo, a versão 1.0 dele chega à Steam no fim de 2022, pois para mim é uma questão de honra ver esse projeto sair do papel.”
Antes mesmo de Pocket Bravery chamar a atenção da comunidade de jogos de luta, a Statera lançou seu primeiro projeto em versão completa: o shooter em estilo 8 bits Guns N’ Runs, jogo de ação e tiro em plataforma que mistura elementos de clássicos como Metal Slug e Mega Man X. O jogo foi lançado oficialmente na Steam no dia 30 de março deste ano, e Jonathan considera esta a primeira grande vitória da Statera: “Não sei medir o impacto real que o Guns N’ Runs teve em meio à comunidade do Pocket Bravery, pois são games muito distintos, mas para mim foi fundamental termos lançado esse jogo como uma prova de que a Statera é um estúdio que conclui e entrega seus projetos. Foi um primeiro passo muito importante para nós”, frisa.
Inspiração nos clássicos e ares internacionais na origem dos personagens
Quem assiste a um vídeo de gameplay ou experimenta Pocket Bravery por alguns minutos identifica de cara elementos presentes, principalmente, nos The King of Fighters e Street Fighter clássicos. Rápido e cheio de combos estilosos e extravagantes, o game, contudo, adota um estilo artístico que lembra Pocket Fighter, game da Capcom de 1997 que traz versões infantilizadas dos lutadores de Street Fighter, e SNK vs Capcom: Match of the Millenium, game que faz um crossover de personagens das duas empresas e que foi lançado para o portátil Neo Geo Pocket Color em dezembro de 1999 e, mais recentemente, ganhou versões para Nintendo Switch e Steam. O próprio apelido de Jon Satella faz referência à emissora fictícia responsável pela transmissão dos torneios de The King of Fighters, o que reforça a idolatria do desenvolvedor pela franquia da SNK.
“O que nós tentamos com o Pocket Bravery é resgatar um pouco dos clássicos dos anos 1990 que foram febre nos fliperamas, mas ao mesmo tempo trazendo elementos originais nossos, que façam o jogo ter uma identidade própria, desde a jogabilidade, com cada lutador tendo seu próprio elemento característico, até o design e origem dos personagens. Temos cenários no Parque Lage, no Rio de Janeiro, na cidade do Porto, em Portugal, e um personagem nigeriano chamado Ndidi. Escolhemos colocar um personagem nigeriano no jogo porque fizemos um trabalho de pesquisa e vimos que Nigéria e Argélia são os países da África onde jogos de luta são mais populares, e essa diversidade de nacionalidades estará presente em todo o jogo”, destaca.
Se Jonathan Ferreira é o desenvolvedor mais atento à parte operacional e comercial do jogo, Anderson Halfeld é o artista da dupla, sendo o criador que cuida principalmente do aspecto de desing dos personagens e a própria história de Pocket Bravery. Para ele, tão importante quanto um game de luta funcional e com combos que aliam técnica e plasticidade, é criar um universo com o qual o jogador se envolva com os lutadores, seja pelo design e origem ou pela história em si.
“Quando entrei no projeto, sempre tive em mente que precisávamos ter um jogo de luta completo, que contemplasse todas as fases de desenvolvimento. Cada aspecto do design e origem dos personagens do Pocket Bravery tem raiz em características de pessoas reais, ainda que o visual seja cartunesco. Para mim, a história também é uma parte fundamental do jogo, e acho importante que o jogador conheça questões como a motivação e a lore dos lutadores. É uma preocupação cada vez mais presente no gênero e nosso desejo é entregar um game de enorme qualidade também nesse aspecto”, salienta.
Até o momento, quatro jogadores estão disponíveis na versão demo básica de Pocket Bravery: Nuno, Hadassa, Sebatian e Ndidi. Além deles, um quinto personagem chamado Daisuke, um samurai de origem japonesa, já está disponível em algumas chaves específicas que a Statera distribuiu para criadores de conteúdo. A princípio, o jogo terá 11 personagens ao todo, mas os demais ainda não estão disponíveis para teste.
“Sabemos que ainda temos muitas coisas para corrigir no jogo, desde questões de balanceamento até a correção de bugs e glitches, e por isso temos trabalhado com extremo cuidado nos personagens. Cada movimento, especial, combo, tudo isso tem sido cuidado de forma muito minuciosa por mim e pelo Jon, e estamos extremamente felizes pelo feedback que a comunidade tem nos dado até o momento. Ainda temos um longo caminho pela frente, mas os passos que demos até agora têm sido na direção certa, o que nos dá muita confiança sobre o futuro do projeto”, acrescenta Anderson.
Sucesso entre criadores de conteúdo, elogios de Justin Wong e “universo Bravery”
E se o retorno da comunidade é parte fundamental desse começo de caminhada de Pocket Bravery antes do lançamento oficial do jogo, a proximidade com alguns dos principais criadores de conteúdo da comunidade tem se tornado parte importante desse feedback positivo e, ao mesmo tempo, ampliado o alcance do jogo entre o público que já fã de games de luta, mas ainda não conhece o indie brasileiro da Statera.
No começo de outubro, o streamer e YouTuber DioRod organizou a Contenda dos Doidos, um torneio de Pocket Bravery que contou com a participação de oito criadores de conteúdo da FGC brasileira, entre eles Eterno Ninja, Pai Geek Jacob e Yorezordd, Jex Barbosa, Matheus Shi, Jex Barbosa, Rafael França e Jota. Jonathan Ferreira conta que o torneio foi uma iniciativa dos próprios criadores de conteúdo, mas que a Statera dará apoio a novas competições no futuro.
“O mais legal disso tudo foi ver que esta foi uma iniciativa que partiu de pessoas que são da nossa comunidade de jogos de luta e resolveram organizar e participar do torneio. O feedback de quem assistiu foi extremamente positivo, e dos criadores de conteúdo também. Não temos dinheiro para apoiar financeiramente um campeonato, mas pretendemos apoiar de todas as outras formas que pudermos iniciativas que busquem divulgar o Pocket Bravery. Esse primeiro campeonato nos deu uma injeção de ânimo para seguirmos com ainda mais força”, reforça.
Por um lado, é natural que fãs brasileiros de jogos de luta deem atenção inicial a um game do gênero desenvolvido no país, mas o mesmo não é esperado no caso de influenciadores e competidores estrangeiros, que não têm o mesmo conhecimento sobre a indústria brasileira. Ainda assim, o americano Justin Wong, nove vezes campeão de EVO, já criou dois conteúdos dedicados ao indie brasileiro. Jonathan conta que a chave do jogo foi enviada despretensiosamente via DM (mensagem direta) no Twitter ao pro player, mas que não esperava que Wong não apenas leria a mensagem, como também produziria conteúdo sobre o jogo e o elogiaria em um vídeo para seus mais de 113 mil inscritos no YouTube.
Em maio, o competidor e streamer fez uma live em seu canal na Twitch dedicada a Pocket Bravery, e em 22 de junho publicou em seu canal do YouTube um vídeo destrinchando as mecânicas do jogo. A atenção recebida por um dos maiores nomes da história dos nos jogos de luta pegou Jonathan e Anderson de surpresa, e ao mesmo tempo trouxe ainda mais gás para o projeto.
“Receber a atenção e os elogios de um cara que dedicou a vida a competir em diferentes jogos de luta em altíssimo nível, que conhece a fundo as mecânicas dos melhores games já feitos no gênero, é muito mais do que um incentivo, é praticamente um carimbo de que estamos na direção certa. Quando enviamos a mensagem na DM no Twitter, achávamos que não ia dar em nada, nem esperávamos que ele fosse ler, e fomos pegos de surpresa quando vimos que ele não apenas testou o jogo, como fez vários elogios ao nosso trabalho. Isso vale como um prêmio para nós”, diz Jonathan.
“Não queremos ser elogiados somente por sermos um game indie brasileiro, que as pessoas falem que o jogo é ótimo apenas por ser desenvolvido aqui. Queremos desenvolver de fato um grande jogo de luta, que conquiste público no mundo inteiro, e receber elogios de um cara com o alcance do Justin Wong é o começo da projeção que almejamos”, comemora Anderson.
Nos últimos anos, a EVO tem se mostrado cada vez mais aberta a jogos independentes, com Under Night In-Birth compondo a lineup principal da EVO 2019 e Skullgirls aparecendo na edição online da EVO 2021. Diante disso, a dupla de desenvolvedores não apenas não descarta a possibilidade de Pocket Bravery aparecer em uma edição futura do maior evento de jogos de luta do mundo, como tem isso como um objetivo.
“Temos visto muitos projetos independentes alcançando grande sucesso mesmo muitos anos após chegarem oficialmente. Under Night e Skullgirls, originalmente, foram lançados há bastante tempo (ambos em 2012), e graças à comunidade alcançaram enorme visibilidade nos últimos anos, a ponto de chamarem a atenção da EVO. Pessoalmente, acho que levaremos até uma vantagem em relação a esses jogos quando o Pocket Bravery for oficialmente lançado, pois ele é um jogo mais familiar para quem é fã de Street Fighter e KOF, por exemplo. Sonhamos sim em aparecer na EVO um dia, por que não?” projeta Jonathan.
Por fim, embora Pocket Bravery não tenha sido oficialmente lançado e ainda esteja em versão demo, o jogo nasce como parte de um projeto ainda mais ambicioso. O nome Pocket é um indicativo de que o universo de Bravery ainda ganhará, no futuro, um game em que Nuno, Ndidi, Hadassa, Sebatian e companhia ganharão versões com proporções mais realistas, em vez das miniaturas com crânios bem maiores que o restante do corpo. Ou seja, as versões “cabeçudas” e simpáticas dos personagens são apenas a primeira parte de um projeto que deverá ganhar novos capítulos no futuro do "Braveryverso".
“Originalmente, iríamos lançar o Bravery primeiro, mas acabamos optando por lançar o Pocket antes, por ele ter um desenvolvimento um pouco mais rápido e simples. Mas ele é parte de um universo que ainda pretendemos expandir muito nos próximos anos. Por ora, porém, todo nosso foco está voltado para o Pocket, e estamos colocando muito coração em cada pequena etapa do desenvolvimento. É o xodó da casa e estamos cuidando dele com muito carinho", brinca Jonathan.