Em 24 de fevereiro, a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) entrou com uma ação na Justiça contra diversas publishers pela venda de loot boxes no território nacional. Pouco mais de um mês depois, em 29 de março, o Ministério Público autorizou a abertura de uma ação para banir a venda das loot boxes.
O MGG Brasil conversou com Udo Seckelmann, advogado desportivo da Bichara e Motta e mestre em Direito Desportivo Internacional, sobre quais são as interpretações das leis brasileiras quanto às loot boxes e se elas se encaixam ou não no conceito de jogos de azar. Qual é o futuro desse recurso no Brasil?
O que é loot box?
Loot boxes são "caixas" que contém conteúdos aleatórios de seus respectivos jogos. Elas são compradas por jogadores, que não sabem quais recompensas ganharão, já que o conteúdo é secreto e só pode ser descoberto após a compra.
Por conta da aleatoriedade, o jogador que compra uma loot box pode receber itens que valem mais ou menos do que o valor do próprio produto. Sendo assim, muitas legislações entendem que as loot boxes se assemelham a um jogo de azar como uma máquina caça-níquel. Pode-se interpretar que o fato desse conteúdo estar abertamente disponível para jogadores menores de idade seja um agravante da situação.
O argumento da ANCED
De acordo com a ANCED, o fato da maior parte dos jogos utilizarem recursos audiovisuais na abertura de loot boxes, como brilhos na tela, além de sons e animações especiais, pode fazer com que esses efeitos induzam no "jogador um sentimento de recompensa na retirada do item, sendo ainda mais grave nas crianças e adolescentes, pois ainda estão em desenvolvimento, o que muitas vezes leva ao vício ou ao desenvolvimento de desvio de personalidade".
A associação diz ainda que "essa prática constitui, segundo a legislação brasileira, uma forma de jogo de azar, estando proibida pela Lei das Contravenções Penais e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Em alguns países, como a Bélgica e a Holanda, o sistema de loot boxes já foi banido. É preciso que o Brasil se posicione em relação a essa prática abusiva".
Com esses argumentos, a ANCED abriu uma ação contra diversas publishers presentes no Brasil, como Riot Games, Ubisoft, Nintendo, Garena, Valve, Tencent, Actvision Blizzard e EA Games, pedindo o banimento da venda de loot boxes em território nacional e uma indenização de R$ 19 bilhões por danos coletivos e individuais causados por elas.
Posicionamento do Ministério Público
Em 29 de março, o Ministério Público atendeu ao pedido da Ação Civil Pública da ANCED para impedir a venda e propagação de uso das loot boxes no Brasil.
O site The Enemy teve acesso ao parecer da abertura de processo contra a Garena. No documento, de acordo com a promotora de justiça Luisa de Marillac Xavier dos Passos, a ação é "uma oportunidade para que o sistema de Justiça se debruce sobre a questão com a possibilidade de se inaugurar medidas que possas ampliar a proteção de crianças, adolescentes e famílias [...]".
A promotora também falou que tem conhecimento sobre os efeitos positivos de jogos eletrônicos na vida de crianças e adolescentes, afirmando que "há usos pedagógicos excelentes" dos games, mas, "no entanto, o recorte da dona presente ação é do uso de mecanismo considerado como jogo de azar e portanto reconhecidamente ilícito, cujo dano está implícito na própria ilicitude".
Qual é o futuro das loot boxes no Brasil?
Segundo o advogado Udo Seckelmann, diante do caso, um juiz pode conceder uma tutela antecipada (liminar) para suspender a comercialização de loot boxes em território nacional até que seja proferida uma sentença sobre o caso, o que traria uma definição concreta sobre a possibilidade das loot boxes serem interpretadas como jogo de azar.
"Isso pode ocorrer a qualquer momento agora. Sem prejuízo, é possível que a tramitação demore alguns anos até que haja definição sobre o tema, visto que cabem recursos contra as decisões do juiz."
O que são jogos de azar?
Em 30 de abril de 1946, durante o governo do presidente Eurico Gaspar Dutra, foi estabelecido o Decreto de Lei Nº 9.215 que proibia a prática ou exploração de jogos de azar em todo o território nacional.
Na época, as especificações sobre o que eram considerados jogos de azar no Brasil foram explicadas no Artigo 50 da Lei de Contravenções Penais, que definia que jogos de azar eram aqueles em que o ganho e a perda dependiam exclusiva ou principalmente da sorte.
Como outros países lidam com loot boxes em videogames?
De acordo com Seckelmann, "o tema das loot boxes é discutido internacionalmente há alguns anos. Cada país tem sua definição específica de 'jogo de azar', por isso podem tomar decisões distintas a respeito do enquadramento das loot boxes".
Atualmente, países como Bélgica e China são alguns dos que enquadraram as loot boxes como jogo de azar. No caminho contrário, o Reino Unido e a Dinamarca não classificam este recurso desta maneira. Há ainda países que analisam os diferentes casos que surgem sobre o assunto.
"Na Holanda, o enquadramento deverá ser analisado caso a caso. Se o conteúdo das loot boxes não for "transferível" entre jogadores, de forma a serem trocados por um valor pecuniário fora do jogo, uma espécie de cash-out, então aquela loot box não será considerada jogo de azar. O contrário será considerado jogo de azar. Logo, o ponto crucial aqui é o item da loot box ser considerado 'money or money's worth'", explica Seckelmann. Esta última expressão significa "dinheiro ou algo que se pode comprar com dinheiro".
Dessa maneira, o advogado acredita que o judiciário brasileiro não deve colocar todas as loot boxes na mesma caixa. "Caso seja enquadrada no Brasil como jogo de azar, o juiz deve fundamentar quais transações serão consideradas jogo de azar. Com isso, as desenvolvedoras devem modelar um novo produto de forma a não se encaixar na definição dada pelo juiz".
Loot box é ou não é jogo de azar?
Para definir se as loot boxes são ou não um jogo de azar, Seckelmann relembra o conceito de jogo de azar no Brasil. "Nossa legislação proíbe jogos nos quais o ganho e a perda dependem principal ou exclusivamente da sorte. Essa seria a definição brasileira de jogos de azar, incluindo apostas em corridas de cavalo em locais não autorizados e outras apostas em competições esportivas".
De acordo com o advogado, as loot boxes não podem nem mesmo serem consideradas jogos. Ele explica que para algo ser considerado um jogo ou até uma aposta, é necessário um ganhador e um perdedor, o que não se aplica a uma loot box.
"Nas loot boxes não há perdedor. Temos apenas um 'ganhador', o qual na realidade é um simples comprador de um produto. Não existe a possibilidade de o comprador não receber nada, como ocorre nas slot-machines. Ele sempre receberá o número de itens indicados nas loot boxes, em gênero e quantidade. É o mesmo que comprar um pacote de figurinhas colecionáveis, no qual podem vir algumas mais 'raras' ou não, mas sempre virão o número X de figurinhas que alguém comprou."
Seckelmann afirma ainda que de acordo com a legislação civil brasileira, a comercialização das loot boxes "se enquadraria em contrato de compra e venda de coisa incerta, o que é legal no Brasil nos termos do artigo 243 do Código Civil". Este artigo afirma que "a coisa incerta será indicada, ao menos, pelo gênero e pela quantidade", questão explicada acima.