Não é segredo que o esport ainda é um mercado dominado por homens. Mesmo com a possibilidade de times mistos, as jogadoras não encontram seu lugar nos grandes times, sendo cobradas diretamente sobre desempenho, performance e resultados. Concentradas no cenário feminino, onde possuem chances reais de competir e evoluir, elas contam com apoio financeiro de menor proporção.
Como tornar o jogo mais favorável para as mulheres nos esportes eletrônicos? Para debater essa e outras questões, o Millenium entrevistou pro players, especialistas e profissionais brasileiros do mercado.
Por que o número de pro players mulheres ainda é pequeno?
“Primeiramente, pela falta de oportunidades”, responde Amanda “AMD” Abreu, jogadora de CS:GO da Bootkamp Gaming. “Eu sei que os campeonatos não são exclusivos para competidores masculinos, mas temos muitos problemas nesse cenário dito como ‘misto’. Muitas meninas sofrem não só assédio, como também ofensas e intimidações. Não são todas que têm psicológico para lidar com isso.”
Quando pensamos em cobrança voltada ao gênero, nem mesmo uma pro player consagrada como Kim "Geguri" Se-yeon está imune.
A jogadora de Overwatch da Shanghai Dragons foi alvo de polêmica logo em seu primeiro torneio, em 2016, quando a comunidade se dividiu nas redes sociais entre aqueles que acreditavam na habilidade natural da sul-coreana e os que a acusaram de trapaça. Como resposta, a pro player promoveu uma transmissão fechada em estúdio e comprovou seu talento ao vivo, mostrando suas mãos no teclado.
Mesmo assim, Geguri ainda é alvo de diversos questionamentos nada relacionados ao seu desempenho. Como jogadora da maior liga competitiva de Overwatch do mundo, ao invés de ter suas habilidades contestadas, ela ainda é cobrada a respeito de sua aparência, com inúmeros comentários no chat das transmissões mencionando seu peso ou corte de cabelo curto demais.
Geguri chegou a se desculpar no Twitter sobre o assunto. "Quando fico estressada, eu começo a começo a comer compulsivamente e fico gorda por isso", ela escreveu. "Peço perdão por ser feia. Na fase 3, eu vou trabalhar duro para mostrar o meu lado bom, pelo menos no jogo!"
Enquanto isso, quantos jogadores homens que entram em cena para competir são questionados sobre suas aparências?
Por que elas precisam se provar tanto?
Não é difícil se deparar com o senso comum (ainda que errôneo) de que homens possuem vantagem biológica nos eSports. Diferente dos esportes tradicionais - nos quais a aptidão física tem influência nos resultados -, os esportes eletrônicos dependem de reflexos, sinapses cerebrais e outras questões nas quais o gênero não interfere no desempenho.
Uma pesquisa realizada pelas Universidade de Berkeley e Universidade do Estado de Michigan comprovou que indivíduos masculinos e femininos não apresentam diferenças de performance em jogos eletrônicos. O estudo acompanhou cerca de 10 mil homens e mulheres nos MMOs EverQuest II e Chevalier’s Romance III, avaliando a velocidade necessária para se avançar de nível de classe.
O resultado encontrado na pesquisa, em que as jogadoras "uparam" tão rápido quanto os jogadores, não apenas provou que o estereótipo de diferença entre gêneros não só é falso, como também desencoraja que mulheres comecem a jogar, indicando que o problema é puramente sociológico.
Rafael Pereira, psicólogo que atuou na KaBuM eSports, chegou à mesma conclusão em sua pesquisa científica, realizada em conjunto com a Universidade Federal de Santa Catarina. “Identificamos que, por questões sociais e até por conta do preconceito, mulheres não tinham oportunidades justas sequer de demonstrar sua performance real”, ele diz. “Fica o questionamento: como comparar o desempenho entre mulheres e homens, quando elas nem sequer têm as mesmas oportunidades que os homens nessa área?”
Como incentivar as mulheres?
Várias são as respostas para essa questão. Enquanto alguns incentivam a mesclagem de times, outros acreditam no potencial do cenário feminino - proposta que, no Brasil, tem a Liga Feminina de CS:GO da GamerClub como grande exemplo.
“Eu sou a favor do cenário feminino porque é uma introdução para as mulheres”, opina a pro player Amanda “AMD” Abreu. “Ali é um lugar que só tem mulheres, ou seja, pelo menos a gente não tem o desconforto do assédio e de ouvir que ‘esse não é seu lugar, vai lavar uma louça’.”
Beatriz “Bea” Terra, jogadora da Xperience eSports, concorda com a representante da Bootkamp. Bea, que já jogou a Liga Feminina pela GDD eSports e SulKings Gaming, acredita que competições femininas são a melhor forma de preparar os times para os campeonatos principais: “É bom e importante nós termos um cenário só para as mulheres, porque isso vai fazer com que a gente evolua até conseguirmos chegar num ponto como os homens. Um dia vamos estar competindo o Major, e isso será algo normal”.
Já o psicólogo Rafael Pereira não concorda com a divisão entre cenários e afirma que as jogadoras deveriam ter mais oportunidades de jogar contra times masculinos: “Sou contra. Mesmo que eu entenda o cenário feminino como uma possibilidade de ingressar mulheres em jogos competitivos, não vejo em nossa história um exemplo de um movimento de aproximação dos dois cenários."
“Por isso, entendo que manter competições exclusivamente femininas vai acabar fortalecendo essa segmentação e dificultando que mulheres tenham um espaço equivalente ao masculino em jogos eletrônicos profissionais”, completa o psicólogo.
Seja favorável ou não, o cenário feminino continua sendo o espaço em que jogadoras encontram apoio, mesmo que este ainda não seja suficiente para que as competidoras consigam se manter financeiramente, já que seus salários e premiações são inferiores aos de times de elite e de grandes competições.
Todas podem jogar
Em maio de 2018, após vencer uma edição da Liga Feminina Gamers Club, integrantes da equipe Vivo Keyd publicaram comentários sobre Olga Rodrigues, afirmando que a jogadora é "irregular" no campeonato por ser transgênera.
Os tuítes engrenaram uma discussão que tomou conta das redes sociais: afinal, mulheres trans podem competir em ligas femininas de eSports?
“Qualquer pessoa que se identifique como mulher deve estar no cenário feminino”, comenta Amanda "AMD". “Não importa se você é cis ou trans, o que define sua habilidade é o tamanho da sua dedicação. No CS, você é só um jogador, não importa o seu gênero.”
Já "Bea" Terra pensa que Olga poderia ser a representação das mulheres no tier 1 (as ligas profissionais), mas deve jogar onde se sentir melhor: “O que deixa as pessoas intrigadas é que ela saiu do topo, que é onde a gente está buscando chegar, para voltar para um cenário que é pequeno. Talvez isso seja um conforto para ela, jogar com outras mulheres, mas ela tinha vaga no [time] misto e poderia fazer o nome das mulheres [no tier 1].”
“Eu não acho que a presença dela atrapalha a competição", continua Bea. "Pelo contrário, acho que jogar contra ela ajuda a aumentar o nível de habilidade de outras mulheres. Porém, a gente quer conquistar o que ela já conquistou e ela abriu mão disso.”
Questionado pelo Millenium, Yuri “Fly” Uchiyama, sócio da Gamers Club, confirmou que Olga é uma jogadora regular da Liga: “Sim, a regra que permite a participação de mulheres trans na Liga Feminina já está em vigor e qualquer jogadora trans pode jogar. Ela [Olga] possui a medalha da liga feminina. Eu entendo que tem pessoas que discordam da regra, nem todas têm a mesma opinião, mas não há irregularidade. Olga pode participar, pois apresentou o documento com nome social e sexo, assim como todas as outras que estão disputando o campeonato.”
Em 2013, o Supremo Tribunal Federal aprovou o direito de alteração de nome e gênero no registro civil. Dessa forma, do ponto de vista regulatório, uma pessoa que se declara mulher é considerada como tal.
O Millenium tentou contato com jogadoras de CS:GO que se posicionaram contra a presença de Olga no competitivo, mas não obteve respostas até o fechamento desta reportagem.
Mudando o jogo
“O que mais precisa é de uma conscientização de que mulheres têm, sim, os mesmos potenciais e capacidades”, diz o psicólogo Rafael Pereira, que acredita no estímulo de times mistos como a melhor solução. “É fundamental termos políticas de incentivo, principalmente financeiras, que declarem que equipes mistas recebam mais de seus investidores. Isso seria uma forma de aumentar o investimento geral e inserir mulheres nas equipes.”
Mas o que fazer quanto à violência estrutural, que compromete e bloqueia o desempenho das jogadoras?
“A primeira mudança deve ser na reeducação do cenário”, aponta Amanda "AMD". “As pessoas precisam entender que esse também é o nosso lugar e as mulheres devem reconhecer que podem, sim, jogar. Essas ideias precisam de mais apoio, de mais investimento.”
“Existem poucas gamers que são trans, e dentre elas um número ainda menor compete”, diz Olga Rodrigues com exclusividade ao Millenium. “Isso é por conta de um motivo parecido daquele das jogadoras cisgêneras, que é assédio e misoginia - completando com a transfobia, que sofrem desde o primeiro contato com o jogo. Quando essas violências estruturais diminuírem, ou pararem, aparecerão mais mulheres trans jogando e competindo.”