Muito antes de os esports se tornarem uma febre no mundo inteiro, com premiações milionárias em games como League of Legends, DOTA 2, Counter-Strike: Global Offensive e Rainbow Six Siege, a competição entre os jogadores era muito mais um hobby do que uma profissão. Jogos de luta como Street Fighter, Mortal Kombat, The King of Fighters e Tekken foram os primeiros a ter, entre começo e meados da década de 1990, o que se pode chamar de cenário competitivo, ainda que de forma bastante rudimentar.
Com os jogadores se enfrentando nos famosos fliperamas ou medindo forças nas versões caseiras dos títulos do gênero mais populares da época, a cena competitiva foi se construindo aos trancos e barrancos, mas se manteve viva ao longo de quase três décadas, sempre com os eventos organizados pela própria comunidade de jogadores e entusiastas crescendo e sendo a força motriz dos fighting games, a ponto de as publishers finalmente criarem circuitos oficiais com premiações em dinheiro.
Em 2020, porém, a pandemia da Covid-19 forçou todo o cenário de esports a se reorganizar em torno de eventos online, com apenas alguns poucos campeonatos presenciais sendo realizados, como o Worlds 2020 de LoL.
O mesmo ocorreu na cena de jogos de luta, mas com uma diferença fundamental: o pouco ou nenhum suporte financeiro das publishers dos próprios jogos e demais empresas parceiras para que os torneios online oferecessem premiações em dinheiro para os jogadores, especialmente em regiões periféricas como o Brasil, onde mesmo em tempos pré-pandemia esse apoio já era pequeno ou, em muitos casos, inexistente.
Foi nesse contexto que coube à própria comunidade de jogos de luta daqui manter a rotina de campeonatos viva, e alguns dos principais streamers do meio criaram seus próprios circuitos de eventos semanais, nos quais o prêmio em dinheiro depende do próprio engajamento dos fãs.
São os casos dos streamers Ryoran, que organiza o maior circuito de torneios semanais de Street Fighter V no Brasil, a Farofians League, Victor Hugo “Buiu”, da Kombatklub, empresa responsável por torneios de Mortal Kombat 11 no Brasil, e Gabriel “Zate” Magalhães, que organiza campeonatos dos chamados anime fighters, como Guilty Gear, BlazBlue e GranBlue Fantasy Versus.
Além da organização e participação nos eventos, a própria premiação em dinheiro dos circuitos online tem sido definida pelo nível de engajamento da comunidade. Por meio da plataforma Matcherino, os espectadores realizam desafios específicos, como retuitar ou seguir perfis parceiros nas redes sociais, rendendo alguns centavos de dólar para o aumento da premiação. Se a meta mínima de US$ 40 (R$ 213) é batida até o fim da campanha, a grana é dividida entre os melhores colocados.
Em entrevista ao MGG Brasil, os streamers explicam como a pandemia talvez tenha acelerado um processo que já era inevitável no Brasil, uma vez que muitos jogadores às vezes não têm dinheiro para viajar para outros estados e disputar eventos como o Treta Championship, maior campeonato de jogos de luta do país realizado anualmente em Curitiba, ou o Fight in Rio, que até 2019 contava pontos para circuitos como a Capcom Pro Tour.
Fortalecimento da cena online em meio à pandemia
Acostumado a organizar eventos online pela Kombatklub desde antes da pandemia, Buiu considera que a estruturação da Kombat League como principal circuito competitivo de Mortal Kombat no Brasil ao longo de 2020 representa uma mudança definitiva na cena do jogo. Embora acredite que os eventos presenciais continuarão sendo o grande foco dos competidores quando esses campeonatos forem retomados, ele frisa que a cena online não será mais um tapa buraco e sim uma segunda via dentro do competitivo.
“Acredito que a pandemia acelerou o crescimento da cena online, justamente por questões de logística e custos, e a tendência é realmente aumento do competitivo nesse ambiente. Os fighting games nasceram dos eventos de comunidade, e foi a partir daí que as empresas passaram a acreditar e promover circuitos oficiais, mas a comunidade sempre foi a grande benfeitora dos jogos de luta e é quem faz os eventos funcionarem”, avalia.
Ao analisar o estado atual da cena competitiva de jogos de luta, principalmente no que diz respeito aos eventos presenciais, Buiu frisa que há questões econômicas relacionadas ao fato de a cena offline não atrair a totalidade de jogadores e entusiastas dos fighting games, principalmente pelo fato de os próprios jogadores precisarem se bancar. Ainda assim, acredita que o apoio à FGC tem crescido nos últimos anos.
“Nós temos um grande desafio pela frente, pois quando vemos os circuitos presenciais, temos que olhar também para o país e para a economia. Querendo ou não, o custo é muito grande para você viajar, arcar com passagens, estadia, translado, e por isso acredito que teremos que fazer um trabalho muito grande para retomar os eventos presenciais, mas acho também que as empresas têm percebido que o jogo de luta é um bom produto, gerando mais interesse das marcas e das próprias publishers."
Narrador oficial da Kombat League e de eventos dos jogos da NetherRealm no Brasil, Buiu considera que a chave para expandir o público dos jogos de luta no país passa por inserir torneios em eventos para um público mais amplo e não formado apenas por fãs de fighting games. Ele inclusive cita experiências recentes com jogos de luta da NetherRealm no país que foram bem-sucedidas.
“Acredito que a forma de trabalhar o esporte eletrônico nos fighting games é inserir o gênero para um público rotativo, similar ao que foi feito com o Injustice 2 na Game XP 2018 e o MK 11 no palco principal da BGS 2019. A gente sabe que não tem uma base de jogadores tão grande como outros títulos, mas esses eventos mostraram que os fighting games são um produto fácil de se consumir entre as pessoas casuais. Colocamos o game em exposição e todo mundo compreende o jogo muito fácil, pois é um gênero familiar para pessoas de várias gerações."
Sobre o futuro da cena online, Buiu considera que a consolidação dos campeonatos pela internet é irreversível, ainda que os torneios presenciais ainda sejam os principais em qualquer cena competitiva, dentro ou fora dos fighting games.
“A cena online tende a continuar crescendo, pois é mais barata, mais fácil, mais democrática e acessível, e o funcionamento do netcode dos jogos tem melhorado, o que facilita os campeonatos pela internet e, automaticamente, minguando um pouco o presencial. Mas o presencial ainda é a competição mais forte, de mais alto nível”, frisa.
Rotina competitiva ajuda em eventos oficiais
Narrador de eventos da Capcom Pro Tour no Brasil, Ryoran organizava a cena competitiva de jogos de luta em Goiânia, mas a pandemia da Covid-19 o forçou a trocar a rotina de eventos presenciais pelo online. Como a Capcom converteu a Capcom Pro Tour em eventos online, com duas etapas dedicadas à América do Sul, o circuito de torneios semanais da Farofians League acabou se transformando em uma espécie de preparação para os eventos da CPT South America, que deram duas vagas para a Capcom Cup, o mundial de Street Fighter V.
Uma dessas vagas foi preenchida pelo brasileiro Jah Lexe, e Ryoran acredita que a rotina competitiva de torneios online tenha contribuído para o bom desempenho dos brasileiros, que nas duas edições ocuparam a maioria das vagas do top 8, embora faça críticas aos problemas de conexão de SFV durante as lutas - os famosos lags.
“As pessoas começaram a se acostumar mais e mais a jogar torneios online e ao próprio ambiente online, além de conhecerem mais seus adversários, mesmo que esse não seja o melhor ambiente para jogos de luta”, explica.
Ryoran elabora que a ideia de organizar um circuito semanal de torneios online já era antiga, mas que a falta de tempo sempre era um obstáculo. Com a mudança de rotina provocada pela pandemia da Covid-19, surgiu a oportunidade de tirar a ideia do papel e colocá-la em prática.
“Sempre organizei torneios todos os meses e tinha acabado de iniciar meu semanal em Goiânia, mas com a pandemia tive que pará-lo. Eu já tinha criado o projeto de um campeonato online semanal, com um amigo, mas nunca botei para frente pelo excesso de trabalho que tinha. Como tudo parou, isso facilitou que eu iniciasse os torneios semanais.”
O narrador já adianta que pretende seguir com os torneios online mesmo após o retorno dos eventos presenciais, mas acredita que os torneios pela internet perderão força quando os principais campeonatos do país, como Treta e Fight in Rio, retornarem. Ainda assim, ele comemora o retorno positivo que o evento tem recebido de competidores e espectadores.
“Acredito que quem gosta do ambiente online ou não tem outro meio irá continuar jogando, mas acho que vai dar uma caída. Pretendo manter o evento depois da pandemia, pois antes de tocar os torneios, fui atrás de pessoas para me ajudar a organizar tudo, buscando fazer algo diferente. Os maiores elogios que recebo da comunidade são justamente quanto à organização e ideias que trazemos para o evento estar sempre inovando”, comemora.
Fora do mainstream, mas com uma comunidade fiel
E se os jogos de luta já são considerados um nicho menor dentro dos esports, o que fazer quando há um nicho dentro dos próprios fighting games? É o caso de títulos como Guilty Gear, BlazBlue e Under Night In-Birth, que pelo traço típico de animes dos personagens acabaram ganhando o apelido de anime fighters. Acostumado a organizar eventos online desde antes da pandemia, Zate considera que o menor alcance dos jogos de luta em comparação a outros esports se deve a uma visão atrasada das próprias empresas que cuidam desses games.
“Até pouco tempo atrás, a estratégia de vendas era focada principalmente nos arcades, e depois esses jogos eram portados para os consoles, com versões novas lançadas a preço cheio a cada atualização de elenco. Você tinha Street Fighter IV, Super Street Fighter IV, Ultra Street Fighter IV, BlazBlue: Continuum Shift, Continuum Shift 2, Continuum Shift Extend. Isso não ajuda em nada na popularização de um gênero”, avalia Zate, que ainda compara a estratégia das desenvolvedoras de jogos de luta com as empresas de jogos free to play.
“É diferente do que acontece no LoL e no Dota, que têm apenas um jogo sendo constantemente atualizado de graça e com lançamento para PC, rodando praticamente em qualquer computador. Nos jogos de luta, as versões de PC, por exemplo, muitas vezes chegam atrasadas ou mal otimizadas e sem cross play. Para completar, as empresas parecem não adotar as melhorias das empresas adversárias, vide as velhas polêmicas de netcode, matchmaking defasado e modos de treino incompletos.”
Fã da série BlazBlue, principalmente da versão Central Fiction, Zate relata que pela pouca atenção da Arc System Works ao público ocidental, os títulos da empresa sempre penaram para conquistar público aqui no Brasil, mas que desde que começou a organizar eventos online, em 2018, têm percebido um engajamento cada vez maior da comunidade.
“Os primeiros eventos que eu organizava reuniam às vezes sete, oito jogadores, mas houve um crescimento muito grande nesse período. Na edição brasileira do AnimEVO 2020, reunimos 102 jogadores de BlazBlue: Central Fiction, e chamamos a atenção até das comunidades japonesa e americana dos anime fighters, pois tivemos o recorde de inscritos entre todas as edições regionais do evento”, comemora.
Apesar dos vários impactos negativos da pandemia, Zate acredita que a transição forçada de eventos presenciais para o online finalmente chamou a atenção das desenvolvedoras para um problema que é alvo antigo de reclamações dos jogadores: o netcode. Como problemas de lag são ainda mais graves em jogos que exigem reações rápidas e comandos extremamente precisos, como acontece com jogos de luta, o streamer acredita que esse problema finalmente começou a ser observado com mais atenção pelos estúdios.
“Durante pandemia, a Arc System e outras devs finalmente perceberam a necessidade de um netcode funcional. Um exemplo disso é o Guilty Gear XX Plus R, que recentemente teve a implementação oficial de rollback (um tipo de netcode que diminui o lag durante as partidas), inicialmente feito por uma iniciativa da própria comunidade e depois abraçado pela empresa. O primeiro campeonato que fizemos do jogo reuniu 132 jogadores e eu não tive praticamente nenhum problema de conexão. E aí você fica se perguntando por que essa não é a norma, já que o rollback existe desde 2006”, indaga.