Foto: Bruno Silva
O que você faz pelo esporte eletrônico que ama? Uns compram camisetas de seus times preferidos, outros viajam para assistir aos campeonatos, e há até aqueles que, como a jornalista que vos fala, escrevem as inúmeras histórias deste cenário... Mas o professor Luiz Carlos Marostica vai muito além, levando sua paixão a lugares nos quais os esports poderiam nunca chegar.
Responsável pelo ensino de informática para crianças da periferia da Zona Norte de São Paulo no Centro para Crianças e Adolescentes (CCA), Luiz faz muito mais do que ensinar o básico do pacote Office. O docente incentiva os alunos a jogar Counter-Strike e a conhecer o universo dos esportes eletrônicos - atingindo jovens que antes sequer tinham a chance de colocar as mãos em um computador.
Em uma tarde normal de trabalho, a redação do Millenium descobriu Luiz enquanto rondava uma das mil comunidades de Counter-Strike: Global Offensive do Facebook. Seu post, acompanhado da foto de uma sala de aula com diversas crianças jogando CS ao fundo, explicava como o bom comportamento de seus alunos rendeu uma bela recompensa: uma rodada de jogatina ao fim de cada oficina.
Um professor sem preconceitos com jogos de tiro? Crianças que podem ser o futuro do esport? Situações como essa precisam ser valorizadas de perto - principalmente em uma sociedade que ainda acredita nos clichês de que games são violentos ou fazem mal aos jogadores. Por isso, fui até o Centro para Crianças e Adolescentes com o intuito de conhecer a história daqueles jovens e ver, mais uma vez, o Counter-Strike fazer a diferença na vida das pessoas.
O Centro para Crianças e Adolescentes
O CCA tem como objetivo oferecer proteção social à criança e adolescente em situação de vulnerabilidade e risco. Assim, para evitar que os jovens sigam caminhos que levam ao trabalho infantil, tráfico de drogas, violência doméstica ou situações conflitantes, o centro possui um espaço no qual são oferecidas oficinas de informática, dança, artes, entre outras atividades que duram um período de quatro horas.
“Somos vinculados à Secretaria da Assistência Social, então não damos aulas, só oficinas”, explicou Luiz. “Eu sou responsável pelo laboratório de informática e a partir disso minha missão é iniciar eles no tema, porque 90% deles não tem um computador em casa, isso quando possuem um celular. Então eles vem pra cá e eu ensino a usar o Pacote Office, como fazer uma pesquisa direitinho no Google, coisas assim.”
Para os alunos e alunas mais velhos, Luiz dá uma aula extra às quartas-feira, quando acontece um bate papo sobre como funciona o mercado de trabalho e quais são os pré-requisitos mais comuns para conseguir um emprego.
Professor, suporte, técnico
Localizado no Jardim Peri, o CCA é um lugar simples, com diversas salas onde as crianças ficam divididas de acordo com a idade. Em plena quinta-feira a tarde, com diferentes oficinas acontecendo, entrevistei Luiz no refeitório. As pessoas costumam dizer que o horário das refeições é sagrado, e naquele momento eu senti que falar sobre CS também era.
Gesticulando bastante e com um sorriso enorme no rosto, Luiz me contou quem ele era. Formado em engenharia civil e técnico em informática, o orientador começou a trabalhar no CCA em setembro - apenas um mês antes de nossa entrevista - mas pelo jeito como falava das crianças, parecia que aquela relação entre o tutor e os jovens já existia há anos.
Os alunos ficavam o tempo todo brincando com Luiz, que às vezes precisava falar mais sério quando todos acabavam se empolgando muito, falando alto ou com aquelas pequenas brigas de criança. Por duas vezes, fomos interrompidos porque alguns garotos iam até o refeitório contar sobre jogadas que tinham feito ou pedir para que o responsável os ajudasse a começar outra partida.
O local em que estávamos, simples e recheado de sons como gargalhadas e conversas, abriga crianças e adolescentes que, em sua maioria, não contam com computador em casa… E em casos mais extremos, sequer possuem uma estrutura familiar. Para Luiz, esses não são motivos para desistir do futuro de cada aluno que está dentro do CCA.
“Cheguei aqui meio assustado, porque foi um choque de realidade. Eu sempre estudei em escola particular, com bolsa, mas estudei, depois fiz faculdade, e sinto que pra eles tudo é sempre muito novo, eles acham diferentes as coisas que eu mostro”, disse o professor, que apresentou o CS para a maior parte dos alunos por um acaso.
Em seu primeiro dia de aula, ao abrir o laboratório para ver o que o futuro como educador lhe reservava, Luiz se deparou com um aluno jogando Crossfire e, após conversar melhor com ele, descobriu que parte das turmas já conhecia alguns jogos de tiro.
“Foi aí que deu um estalo. Pensei que seria legal fazer um campeonato de Crossfire pra eles, porque eu vi eles falando sobre o assunto e achei que deveria unir o útil ao agradável. Seria uma recompensa por eles cumprirem as atividades, então se não fez atividade não tem jogo, funciona assim”, explicou enquanto mudava o sorriso para uma expressão mais séria, me fazendo lembrar dos meus docentes preferidos da escola e da faculdade, que agiam da mesma maneira.
Quando o especialista em informática tentou instalar o Crossfire nos computadores do laboratório, deparou-se com um obstáculo: nem todas as máquinas aguentavam executar o jogo com boa qualidade. “Foi aí que pensei no CS 1.6, porque é muito leve, rodava em qualquer batata na minha época. Então tentei e deu super certo!”
O amor de Luiz pelos jogos começou na infância. Tíbia e o próprio Counter-Strike fizeram parte de sua adolescência, mas ele admitiu que na época, com cerca de 15 anos, não fazia nem ideia do cenário competitivo que estava por trás do jogo. Foi a ESL One Cologne de 2015 que mudou isso. Naquele torneio, os brasileiros Gabriel “Fallen” Toledo, Fernando “fer” Alvarenga, Marcelo “coldzera” David, Lucas “Steel” Lopes, Ricardo “Boltz” Prass e Renato “nak” Nakano representavam a Luminosity Gaming e terminaram o campeonato na 5ª/8ª colocação.
“Desde então, eu nunca mais parei. Sempre vejo Majors, BLAST Pro Series, tento acompanhar outros times além da MIBR, vejo jogos da FaZe, mousesports, Astralis, assisto aos vídeos para tentar absorver conhecimento sobre o jogo, mas meu foco mesmo são os times brasileiros.”
CS na sala de aula
Durante minha visita ao CCA, aprendi a nunca mais subestimar crianças. Quando perguntei ao Luiz se elas já conheciam os esportes eletrônicos, soube que muitos não só já entendiam do assunto, quanto até mesmo já idolatravam FalleN e Coldzera, estrelas brasileiras que conquistaram o cenário nacional de CS e o mundo.
“Mas uma parte deles nem imaginava que poderia ganhar dinheiro jogando videogame, né? Então eu pedi para que fizessem uma pesquisa sobre a origem dos esports, como funcionam os circuitos e por aí vai. Eles estão começando a entender, mas estou indo devagar para ninguém sair achando que já é o novo Fallen ou a nova Showliana [Juliana “Showliana” Maransaldi].”
Quando Luiz mencionou Showliana, me veio à mente a primeira visão que tive do laboratório de informática quando cheguei ao CCA: as meninas não eram maioria, mas elas definitivamente estavam lá. Antes mesmo que eu precisasse perguntar sobre as alunas, o professor contou como foi o processo de apresentar os jogos a elas.
“Faço todos os times de forma mista. As meninas têm interesse, mas também têm vergonha porque os meninos reprimem elas, eles falam ‘Isso aqui não é jogo de menina’. Na última sexta-feira, eu falei pra eles ‘Se eu ver alguém falando que não é jogo de menina, não vai mais jogar, simples assim’. Eu incentivo muito elas, já mostrei vídeo da Showliana, da Pan [Pamela "Pan" Shibuya], elas dão bala em muito marmanjo por aí. Na manhã tem uma menina que joga muito bem, a Milena, ela tem vontade de aprender mesmo, tem o negócio na mão, o talento nato!”
As dificuldades que não apenas as meninas, mas a maior parte dos alunos enfrentam, são as condições pessoais e familiares de cada um: “Alguns se encontram em situações bem complicadas, onde os pais são usuários de droga, outros que os pais mal os veem, outros que os pais incentivam as crianças a ir para os faróis pedir dinheiro...”
“Eu vi nos esports uma chance de trazer eles de volta. Eu lembro até hoje do que senti na primeira vez que fui em uma lan house, eu vi a criançada jogando e me arrepiei inteiro. Isso devolve eles pra sociedade, sabe? Eu tenho esse poder de trazer eles de volta através do esports, mesmo que seja o CS 1.6 básico. Ali, eles podem pensar que estão só jogando, mas estou tentando estimular um senso de sociedade, de equipe, de montar uma estratégia, pode não ser de uma maneira convencional, mas eles estão fazendo o que gostam e evoluindo como seres humanos. Posso trazer eles de volta com isso, então é o que eu faço, cada um usa a arma que tem, e nesse caso eu uso as que eu tenho”, disse Luiz emocionado, sentindo a responsabilidade que acompanha uma tarefa tão sensível como essa.
Defusando uma bomba por dia
Dentre todos os momentos da entrevista no CCA, o que eu mais ansiava e, ao mesmo tempo, estava receosa, foi a hora de conversar com as crianças. Muitas delas passavam por situações difíceis em casa e nem sempre é fácil falar sobre isso.
Quando perguntei ao tutor quais delas se sentiam à vontade para falar e também quais estavam empolgadas com a matéria, fui apresentada a quatro garotos. Diogo, de 16 anos, era o mais velho entre todos ali. O CCA só abriga crianças até os 14 anos, mas os alunos que atingem idades superiores podem permanecer no local como voluntários, e este é o caso dele, que parecia super à vontade em conversar, sentando na cadeira à minha frente como se fôssemos amigos e ele fosse me contar uma história.
Sorrindo como alguém que se livrou de uma bronca, Diogo me contou que ele era um dos alunos que já jogava Crossfire e outros FPSs antes da chegada de Luiz: “Achamos que ele ia desinstalar o jogo dos computadores, porque a gente tinha baixado sem permissão... Mas ele ficou tranquilo e depois começou a jogar com a gente”.
Guilherme, de 12 anos, estava claramente animado com a entrevista, sentado com as costas curvadas para frente, falando sem timidez e vestindo sua camiseta do Santos Futebol Clube. Já Bernardo, 13, tinha um sorriso tímido no rosto, a voz calma e parecia mais receoso com a conversa que estava por vir, sentado com as costas rentes à cadeira. Gabriel, 12, era o mais empolgado entre eles, falando tudo praticamente com a confiança de um adulto.
Entre um assunto e outro, perguntei se alguém tinha um ídolo nos games ou se acompanhava o trabalho de alguém do meio. Recebi respostas como Ninja, famoso streamer de Fortnite que já atingiu 400 milhões de visualizações na Twitch, Tecnosh, streamer brasileiro de PlayerUnknown’s Battlegrounds, e Rolandinho do canal Pipocando Games.
Já ansiosa pela resposta, questionei se eles gostariam de se tornar pro players. Como nunca tive consoles em casa, até pouco antes do ensino médio eu mal havia tocado em videogames, mas ali o caso era diferente. Eu me perguntava se a geração deles já podia sonhar com essa profissão que ainda gera tanto estranhamento.
“Eu estava pensando nisso ontem, sabe?”, me contou Bernardo, já mais confiante para falar. “Estava vendo meu padrasto conversar com meu irmão, que também gosta muito de games, e aí meu padrasto falou ‘Você acha que games vão te levar a algum lugar?”, aí eu pensei ‘Podem levar sim!’. Tem gente que ganha mais de R$ 1 mil, mais de R$ 100 mil e isso não é pouca coisa, acho que vale a pena tentar investir.”
Enquanto Gabriel sonhava alto - “Já pensou se alguém leva a gente pra jogar lá fora?” - Guilherme confessou que outra paixão ocupa seu coração além dos games: “Só se eu não desse certo no futebol, né? Porque é uma coisa que eu amo!”, me contou o santista, que deu um sorriso de orelha a orelha quando disse a ele que o Santos possui times de Counter-Strike: Global Offensive.
E caso eles se tornassem pro players, como suas famílias reagiriam? Cada um me deu uma resposta e, enquanto um falava, os outros logo concordavam.
“Acho que meu pai não ia brigar comigo desde que eu não parasse os meus estudos. Isso é muito importante pra ele”, contou Guilherme.
“Acho que se eu tivesse a chance de ir lá pra fora jogar campeonato, meu pai apoiaria e eu aproveitaria para representar minha origem. Eu venho de uma quebrada pobre, pra chegar naquele lugar, não teria sido fácil, então eu ia querer representar minha origem!”, disse Diogo, o mais velho, que logo inspirou os outros garotos.
“Eu ia representar o Peri, o lugar onde eu cresci. Se alguém me perguntasse ‘Você tem orgulho do lugar onde nasceu?’, eu ia falar ‘Tenho!’. Tenho orgulho de ter tido um CCA que me acolheu, minha família, meu pai que luta para ganhar as coisas pra mim”, disse Guilherme, no alto de sua sabedoria... Com apenas 12 anos de idade.
“Eu acho muito bom a gente estar aqui no CCA, sabe?”, respondeu Bernardo enquanto me olhava nos olhos com um semblante sério. “A gente podia estar aí no mundo, fumando, fazendo um monte de coisa errada, mas a gente tá aqui. Não só jogando CS, mas aprendendo.”
“Aprendendo o que é certo”, emendou Diogo na fala de Bernardo. “Muita gente desvaloriza o jogo de tiro, fala ‘Ele tá jogando isso, amanhã ele tá matando’, mas não é isso. Se uma pessoa tem raiva, por exemplo, ela vai se distrair jogando, não é como uma pessoa que fuma, que vai perder o tempo da vida dela fumando. Com o jogo, ela poderia esquecer o fumo pouco a pouco.”
É incrível como estes jovens não estão alheios às suas realidades, tendo certeza de quem são, o que querem e como podem perseguir seus sonhos. Em um mundo no qual se discute tanto sobre privilégios e meritocracia, eu espero que eles consigam oportunidades de mostrar sua força e que tenham apoio para jamais desistir de seus objetivos.
GGWP
Sem Luiz, talvez nem todas as crianças e adolescentes teriam a oportunidade de conhecer o Counter-Strike, sonhar com os esports, ou ao menos ter consciência de que até os sonhos mais loucos - desde ser um pro player até seguir outras profissões - podem se tornar realidade.
Quando terminei de entrevistar o Luiz, disse que ele poderia deixar uma mensagem final, se quisesse. Espero que o recado do orientador inspire outras pessoas como me inspirou... E não apenas no jogo, mas também na vida:
“Eu fiz aquele post com o intuito de mostrar para as pessoas que elas podem melhorar os esports, porque a comunidade de CS, por exemplo, é muito tóxica, machista, homofóbica e racista. Só de você não ser tóxico, de acompanhar, de comprar uma camiseta do seu time, isso já é melhorar o esport que você ama. Você não precisa dar aula pra crianças, só deixe no jogo um ambiente pacífico. Pra comunidade, o que tenho a dizer é: sejam melhores. Não precisa hatear o cara se ele errou dentro de jogo!”
“Muito obrigado a todos que curtiram meu post no Facebook. Se não fosse por vocês, nada disso estaria acontecendo, ninguém ia olhar. E ao CCA e às crianças, eu não sei nem o que falar, não sei como agradecer. Eles me ensinam todos os dias a buscar coisas melhores para eles, para mim, para tudo, sabe?”
Sabemos, Luiz. E agradecemos a lição.