Alguns projetos de esports, para além de celebrar a paixão por jogos competitivos, são importantes para que o cenário se torne mais acessível e inclusivo. A Liga dos Surdos é um destes projetos. Criada em 2019, a iniciativa conta com um torneio de League of Legends online que reúne deficientes auditivos de todo o país.
Em comemoração ao Dia Nacional dos Surdos, celebrado nesta quinta-feira (26) como parte do setembro azul, o Millenium entrevistou André Luiz "NerdSurdo" Santos, criador do canal NerdSurdo e um dos idealizadores da Liga dos Surdos, que comentou sobre como o cenário competitivo de esports pode ser mais acessível e inclusivo.
André tem 32 anos e é programador, streamer e youtuber. Original de São Paulo (SP), ele descobriu os games com Pinball Space Cadet, de Windows 95. A partir de então, ele se aprofundou no mundo jogos, estabelecendo sua paixão por títulos como Ragnarok, MMORPG da Gravity Corporation.
Ele conta que League of Legends é seu jogo favorito: “Acho legal o desafio das partidas e aquela vontade que o jogo passa de você querer vencer as partidas. É um desafio novo a cada confronto. O Overwatch também causa essa sensação e por isso gosto muito do jogo, mas minha afinidade com MOBA é maior e a mira não ajuda muito”.
O programador nasceu ouvinte. Porém, em 2017, ele teve perda total de audição no ouvido direito e parcial no ouvido esquerdo. A causa da surdez súbita nunca foi descoberta.
“Dormi bem e acordei surdo. Foi uma grande transformação na minha vida. Primeiro, tive que encarar a nova realidade e buscar soluções. Depois, teve a questão da autoestima, que fica muito abalada quando acontece esse tipo de problema de saúde. Fiquei muito sem rumo no início, mas com apoio da família e dos amigos fui encontrando meu caminho. (...) Atualmente, uso aparelho auditivo, o que fez minha a audição ficar muito próxima da normalidade, melhorando minha qualidade de vida. Também uso um fone que tem uma frequência auditiva maior e meu aparelho auditivo também conecta no computador via Bluetooth”.
Desde então, André tem buscado formas de ajudar pessoas em situações similares à sua. Até que um projeto se alinhou com essa motivação: a Liga dos Surdos. O programador passou a comandar a iniciativa ao lado de um amigo, Phillipe “Lipex90” Marques.
Atualmente, o projeto conta com um grupo formado por cerca de 100 surdos ou deficientes auditivos, sendo que 40 deles disputam a liga de LoL.
Criada em 2019, a Liga dos Surdos está em sua primeira etapa, cujo início foi em 21 de julho. A competição, que terá uma segunda temporada a partir de outubro, é produzida de forma independente e, mesmo sem apoio financeiro, conta com transmissão de todos os seus jogos.
“Temos um grupo de Whatsapp com quase 100 surdos ou deficientes auditivos, todos jogadores de League of Legends. Parte deste grupo se organizou em cinco equipes, que se enfrentam todos os domingos. (...) Todos jogam por amor ao esport. O campeonato atualmente não tem nenhum tipo de ajuda financeira, seja patrocínio ou parcerias. Gostaríamos muito de conseguir empresas ou organizações que nos ajudassem a organizar, para que possamos oferecer premiações para os participantes. Porém, devido à vontade e amor ao sport de todos os participantes, o campeonato está acontecendo mesmo sem essa ajuda”.
Falando sobre o projeto, André não esconde a vontade de expandir a iniciativa para uma organização de esports totalmente voltada aos surdos e deficientes auditivos. Segundo o programador, o plano é ampliar a competição para outros esports.
No entanto, não são todos os jogos que oferecem indicativos visuais que comuniquem ao jogador sobre o que acontece a seu redor. Enquanto games como Counter-Strike: Global Offensive e Overwatch carecem ou não possuem esses recursos, André comenta como as funções presentes em League of Legends melhoram a jogatina de surdos e deficientes auditivos.
“O LoL tem sistema de pings no qual os jogadores podem sinalizar eventos do jogo de forma prática. Também contamos com o chat de texto e o mapa. Como o LoL é um jogo muito visual, a atenção na tela vale mais do que o áudio em si, já que os artifícios do jogo ajudam bastante. Porém, se esta ferramenta fosse aprimorada e mais alertas fossem implementados, com certeza a jogabilidade seria melhor. Além disso, tutoriais de jogo e vídeos em libras poderiam aprimorar a experiência dos surdos”.
No quesito comunicação, os jogos atuais não oferecem acessibilidade. Enquanto André consegue vocalizar, muitos deficientes auditivos contam apenas com a língua de libras para se comunicar e, devido a ausência de opções, é difícil conversar com colegas de time.
“Sou oralizado devido a surdez depois de adulto, mas tanto eu quanto outros surdos no geral utilizamos muito o chat do game e o sistema de ping para nos comunicar. Às vezes, o entendimento é dificultado devido à qualidade do áudio, mas no meu caso também utilizo comunicadores de voz, coisa que para outros níveis de surdez não é possível”.
Antes mesmo de assumir a frente da Liga dos Surdos, André já trabalhava em formas de auxiliar outros jogadores surdos e deficientes auditivos. Foi com este intuito que ele criou, em 2018, os canais do Nerd Surdo. Na Twitch, ele realiza transmissões diárias, que contam com transcrição em tempo real da sua fala.
“Por sempre ter o contato com jogos e tecnologia, sempre tive interesse em trabalhar nesse universo e desenvolver projetos nele. Até então não foi possível por falta de recursos, mas ao longo do tempo fui trabalhando e adquirindo equipamentos e internet que fossem capazes de suprir essa necessidade. Ao longo do caminho veio a surdez e, quando fui iniciar o projeto das lives, queria um nick que fosse original e que traduzisse quem sou eu. (...) Como brincadeira, pensei naqueles nicks de chats de antigamente e qual seria o que melhor me refletisse, daí nasceu o nome NerdSurdo. Ainda por cima, ele estava disponível, e não pensei duas vezes na hora de registrar esse endereço e depois criar os canais no YouTube, Twitch e os perfis nas redes sociais”.
Além da Liga e dos canais, o programador possui um projeto de palestras que planeja iniciar em breve, para inspirar outros membros da comunidade surda a perseguir os esports.
“Em parte, quero dar o meu exemplo para que as pessoas não desistam de seus sonhos, objetivos e metas, e que mantenham a vida normalmente. Quero também que as pessoas tenham parâmetros sobre os tipos de surdez, e que alguns preconceitos sobre surdos sejam quebrados. Principalmente no mundo dos esports, em que muitos tem preconceitos com jogadores surdos”.
Além disso, o jogador quer apresentar o competitivo para um público cada vez mais amplo, tornando seu conteúdo cada vez mais acessível. Ele está aprendendo a língua de libras e planeja usá-la nas transmissões quando tiver fluência, para aumentar a comunicação com outros jogadores.
“Aos poucos, o cenário está mudando, mas ainda há pouca inclusão no mundo dos esports. Sinto como minha missão trabalhar para que este cenário melhore e que não só no caso da surdez, como todos os tipos de deficiência sejam incluídos nos esports. Temos jogadores e personalidades valiosas entre estas pessoas, e o mundo precisa conhecê-las e ajudar a fazer os esports mais universais e acessíveis a todos”.
A primeira etapa da Liga dos Surdos chegará ao final neste final de semana. As semifinais do torneio acontecem no sábado (28) a partir das 15h45 e a grande final será no domingo (29) a partir das 17h45 do horário de Brasília. Ambos os dias de jogos serão transmitidos ao vivo no canal da liga (assista abaixo).
O torneio também contará com um segundo split, que terá início em 13 de outubro. Os interessados podem se inscrever através do email ligasurdoslol@gmail.com até 5 de outubro.
O canal NerdSurdo conta com transmissões diárias de jogos como League of Legends, Teamfight Tactics, Overwatch e Summoners War.